Num dos meus artigos recentes, surgiu lá um comentário de um elemento daquela fauna que pulula pela internet: anónimo, pouco culto, com argumentação algo brejeira e de intelectualidade boçal. Mas, honra lhe seja feita, o dito cujo deu-me uma ideia para um futuro artigo. Dizia o indivíduo:
“Pois, pois, pois…blá, blá, blá…sempre a mesma coisa, sempre com a mania que são santinhos…e depois é o que se vê…roubam jogadores a outros clubes, com desculpas esfarrapadas (e estou a referir-me a Farias), metem em tribunal quem se atreve a falar de vocês, numa clara demonstração de coacção, como aos Gatos Fedorentos, mas depois não gostam quando vos envestigam… deviam ir todos presos…”.
“Roubar jogadores? Nós?”, devo ter exclamado na altura, sentindo o aguilhão da honra ferida a aferroar-me o espírito. Lições de moral só leva quem quer, por isso, arregacei as mangas e tratei de efectuar umas investigações.
Os mais decanos jornalistas gostam de referir-se ao Benfica como um clube respeitável, em que os seus dirigentes – como Borges Coutinho – usavam de uma ética transparente na condução do clube e nas relações mantidas com os adversários. A minha investigação não chegou, confesso, tão longe, mas esses elogios sempre me pareceram algo descabidos (vide a forma como Eusébio foi contratado, com raptos rocambolescos no aeroporto).
Um dos exemplos de golpaças espertalhaças sucedeu sob a égide de Manuel Damásio, com a tentativa de rescisão de um dos símbolos leoninos de então, Jorge Cadete. O esquema mal-amanhado envolveu os “puritanos” dirigentes de ambos os clubes – ambos os dois, como diria o Orelhas – em trocas de acusações que atingiram o seu epicentro naquele programa inenarrável, chamado “ donos da bola”. Num folhetim digno de novela mexicana, Santana Lopes acusava, em directo, Gaspar Ramos e Paulo Barbosa como os cérebros por detrás da rescisão do avançado leonino. Manuel Damásio, apesar das negações compungidas de Gaspar Ramos, na comunicação social, saiu-se com esta, em 29 de Janeiro de 1996, publicada no “Público”:
“Cadete pode jogar este ano no Benfica…se o treinador quiser…”.Pois, o treinador até que podia, mas a Comissão Paritária da Liga é que não esteve pelos ajustes, não reconhecendo justa causa a Cadete para a rescisão. O valor indemnizatório, estabelecido pelo
acórdão, inviabilizou desde logo a propalada transferência. Mas isto foi apenas o início de uma epopeia…
Epopeia não cantada por Camões no seu épico, pois as diatribes que rodeavam estas manigâncias fariam corar de vergonha qualquer um com um mínimo de pudor. A seguir a Cadete, foi a vez de outro clube de Lisboa sentir na pele a “ética” dos dirigentes encarnados. Mauro Airez, argentino figura de proa na equipa do Belenenses, rescinde com a alegação de…salários em atraso. Neste caso, depois da pressão, com ecos diários na imprensa, dos dirigentes benfiquistas, a Comissão Paritária liberta o jogador, que se muda de armas e bagagens para a 2ª circular, em Janeiro de 96.
Contentes com o sucesso da operação, não tarda nova rescisão, desta feita com contornos inovadores. Se Ernesto Farías alegou a inadaptação da esposa à altitude de Toluca, Tiago, o médio caceteiro do Marítimo, não lhe ficou atrás na criatividade do argumento utilizado: medo de andar de avião ou, mais honestamente, de aterrar na pista da Madeira. A “grandeza moral” dos sucessores de Borges Coutinho ficou bem patente na cirúrgica altura em que tudo se passou: 10 de Fevereiro de 1997. A data pode não dizer grande coisa ao comum dos adeptos do pontapé na bola mas, numa análise mais aprofundada, permitida facilmente hoje em dia pela facilidade de obtenção de informações no ciberespaço, ficamos a saber que o Marítimo, um dia depois, jogou com o…
Se aqui o leitor exclamou desabridamente “Benfica”, fique desde já a saber que…ACERTOU! Ou seja, o afóbico jogador rescinde com a sua entidade patronal, na véspera do encontro com o seu futuro patrão. Confusos? É a “exemplar” forma de actuar daquele que se auto-proclama o “mais grande” clube português. Mais confusos ficamos se lermos as declarações prestadas pelo supra-sumo do clube das águias, Manuel Damásio, ao jornal "a Bola":
"Não estamos interessados no jogador e o Benfca nada tem a ver com a rescisão. Não actuamos dessa forma e não são esses os nossos métodos". Num daqueles seriados televisivos, passados nas salas de tribunais, esta veemente declaração até poderia convencer o mais incauto jurado. Não fosse o diabo tecê-las, o presidente do Benfica, em declarações a outro pasquim, o "Record", aliava-se inclusivé ao Altíssimo, proferindo:
"o Benfica não tem religiosamente nada a ver com o pedido de rescisão de Tiago". Deus é que não deve ter achado grande piada a esta colagem...
Como tanto despudor não podia ficar impune, foi um irritado presidente dos madeirenses o autor da acusação, publicada nas páginas do "Público": "O Tiago foi aliciado pelo Benfica por intermédio dos senhores José Veiga, Toni e Manuel José para rescindir com o Marítimo na véspera do nosso jogo na Luz". Para que não ficassem dúvidas, o presidente dos insulares, Rui Fontes, rematou a entrevista com um remate certeiro: "Foi a este estado que chegou o Benfica, antigamente dirigido por grandes senhores". Para bom entendedor, meia palavra basta. O jogador acabou por assinar contrato com os encarnados em 21 de Março de 1997.
Comercialmente, a estratégia seguida depois pelo Benfica, pode ser considerada brilhante. Se resultou com Tiago, porque não com outros, devem ter pensado os "irmãos metralha" lá do sítio. Dito e feito. O futebol português entrou numa nova era. Tiago já era passado, veio depois Jordão - proveniente do Estrela da Amadora - e Nuno Gomes, o amaricado jogador do Boavista. Aqui, verdade seja dita, não houve nenhuma rescisão. O destaque justifica-se apenas e só pela altura em que ambas foram concretizadas. "A locomotiva contra a suspeição" voltava a apitar, e logo duas vezes, antes das deslocações aos campos dos rivais em questão. Grande ética, não haja dúvidas...
Um dos exemplos supremos da "espertice", numa operação com contornos bem
portugueses, no que à arte do "desenrascanço" diz respeito. Paulo Madeira, jogador do Belenenses, contratado pelos encarnados, sem pagar um tostão ao clube da cruz de cristo. Nada mais fácil, como qualquer manual de aprendiz de trapaceiro explica, no capítulo respectivo. Leva-se o tosco jogador para um clube anónimo, de preferência a vegetar numa divisão secundária espanhola, evitando dessa forma o pagamento de qualquer indemnização e depois, umas semanas passadas, quando a "
poeira" já tiver acentado, promove-se o regresso do jogador. Assim, quem se "
lixa é o mexilhão"...
Já estão enfadados? Para o final, guardei um pormenor - mais um - que atesta bem o modus operandi do clube dos galináceos. José Fonte era jogador do Setúbal. Era titular. O Setúbal ia jogar com o Benfica. José da Fonte rescindiu na véspera do jogo. Sensação de deja vu? Pois, é o que dá ser pouco variado no método mas, para todos os efeitos, o que conta é a eficiência. E, como se tem visto, resulta sempre. Para a história, ficou mais uma vitória benfiquista. José Fonte assinou de seguida pelos encarnados. O que distingue este caso dos outros, numa espécie de moral da história, algo hilariante: Chumbita Nunes, investido da função de bobo da corte, agradeceu publicamente ao Benfica por, pasme-se, conduta honrada durante o processo!!!
Pergunto eu: será que passou pelo cérebro de ameba do dirigente sadino que o Benfica, nessa "conduta honrada", possa ter acelerado a rescisão do jogador, na véspera do encontro, ou será mais uma coincidência?
Para finalizar, ainda recordo os ecos desse jornal, tido como sério, composto por jornalistas que se vêem como tribunos impolutos, "a Bola", numa chuva de elogios aos encarnados, realçando a nobreza de caracter por...indemnizarem o Vitória de Setúbal. Lê-se e não se acredita. É o requiem da moral e bons costumes!