Provavelmente, o pior mundial de sempre...
Aconteceu-me o que não era suposto poder acontecer a quem se considera quase viciado em futebol: adormeci durante a final do Mundial! Adormeci aí pelos 80 minutos, quando era claro que as equipas se arrastavam para o prolongamento, se não mesmo e voluntariamente, para os penalties, e acordei com o grito do locutor quando Zidane cabeceou à queima-roupa e Buffon mostrou porque foi considerado o melhor guarda-redes deste Mundial.
Infelizmente, estava pois acordado quando o mesmo Zidane foi incapaz de esperar só mais dez minutos para passar da história à lenda. O que lhe terá dito Materazzi para justificar aquele ataque de loucura se é que lhe chegou a dizer alguma coisa e o gesto demencial de Zidane não foi apenas o tributo que o génio paga à loucura?
Acabou assim, sem beleza, e decidido a penalties como não podia deixar de ser aquele que foi, provavelmente, o pior Mundial de todos os tempos. Pior ainda do que o Coreia-Japão, onde os génes do vírus que parece ter-se instalado na maior competição futebolística do mundo já eram evidentes, para quem os quisesse ver. Não sei a quantos mais mundiais destes poderá o futebol resistir, mas seria bom que as cabeças pensantes percebessem que não resistirá eternamente.
O que faz do futebol o espectáculo mais popular do mundo é a sua simplicidade de meios, de regras e de objectivos. Jogar futebol, gostar de ver jogar futebol, é a coisa mais natural e instintiva que existe num ser humano: basta uma bola e um jogador de cada lado e é possível ter futebol. Mas, seja com dois ou com vinte e dois, num campo de terra ou num relvado perante 70.000 espectadores, nenhum jogador e nenhum espectador se contenta com um tipo de jogo que se limite a fazer circular a bola de uns para os outros, sem nenhum outro objectivo que não fazer passar o tempo, à espera de um deslize do adversário ou do desempate por penalties. Quando treinava o FC Porto, Bobby Robson definiu uma estratégia tão simples quanto extraordinária: era preciso marcar golo nos primeiros dez minutos. Não era nos primeiros quinze: era nos primeiros dez. Com essa atitude, a sua equipa entrava determinada a ganhar o jogo desde o primeiro minuto e os adversários entravam logo intimidados.
Parece que não resultou mal: o FC Porto foi campeão, teve o melhor ataque e, sobretudo, deu espectáculo. Agora, ao mais alto nível, a regra é a inversa e o oposto do que cantava Gerardo Vandrei : «Vem, vamos embora, que esperar não é saber! Quem sabe, faz a hora, não espera acontecer».
O futebol foi inventado para que as pessoas se divirtam a ver ou a jogar. Não para que adormeçam em frente à televisão, morram de tédio nas bancadas ou de impotência em campo. Sem golos e sem liberdade para os artistas, não existe futebol apenas a caricatura científica dele, que nos vendem como resultado de grande trabalho, grande competência e grande modernidade. O que aconteceu na Alemanha foi o triunfo do resultadismo, a imagem de marca deste Mundial.
Vejamos: a Itália mereceu ganhar o Mundial? Nem sim, nem não. Mereceu tanto ou tão pouco como os outros candidatos.
Todos eles Brasil, Argentina, Alemanha, Inglaterra, França esperaram poder ganhar o Mundial através da mesmíssima fórmula posta em campo pelos italianos: o mínimo de riscos, o mínimo de desgaste, o mínimo de improviso, o mínimo de liberdade concedida aos artistas, próprios ou alheios. Ganhou a Itália, pois, porque nesse tipo de jogo é ainda a melhor.
Quem foi o melhor jogador do Mundial? Resposta adequada: ninguém. Não houve um só jogador que se destacasse de forma clara e regular, ninguém que tenha sido autor de uma só jogada de que nos lembremos daqui a um mês. Não houve um só jogo de encher o olho, um só que fique para sempre associado à memória deste Mundial. O melhor marcador da prova não foi além de cinco golos facturados e aquilo que ocupou as discussões durante o Mundial foram os penalties que houve e não houve, o excesso de cartões, as simulações e os mergulhos, e os efeitos caprichosos da bola teamgeist, eloquentemente inventada para trair os guarda-redes e assim suprir a incapacidade de marcar golos. E a imagem que ficará a marcar este Mundial (para além da excelente organização alemã, que é justo recordar) é a desgraçada cabeçada de Zidane em Materazzi.
Aparentemente preocupada com o que viu e com os comentários que foi ouvindo, a FIFA anunciou agora que vai fazer um seminário de reflexão com os treinadores das 32 selecções presentes para tentarem perceber porquê que se viu tão pouco futebol de qualidade neste Mundial. É assim como se a policia, preocupada com os assaltos a bancos, chamasse os chefes das principais quadrilhas de assaltantes para discutir as medidas a adoptar.
Toda a gente sabe que a fraca qualidade deste futebol é obra directa dos treinadores resultadistas, os teóricos do futebol de «expectativa e contenção», da «coesão defensiva», da «circulação de bola», da «redução de espaços» e da «consistência», que põem todas as equipes a jogar igual, as boas e as más, as que têm grandes jogadores de ataque e as que não têm: todas a jogar em 40 metros de campo, todas a defender atrás da linha da bola, como no andebol, todas reduzidas a um único avançado de raiz.
Por isso, e primeiro que tudo, o que a FIFA deveria fazer era juntar os 32 treinadores com algumas velhas glórias do futebol, ex-treinadores de equipas que fizeram história e representantes do público, para que estes explicassem àqueles que, a continuar assim, nem os mundiais nem o futebol têm grande futuro.
A segunda coisa a fazer era limitar esta diarreia de futebol em que está transformado o Mundial. São equipas a mais, jogos a mais, tempo a mais. De que serve ter uma competição com 64 jogos, se apenas quatro ou cinco valem a pena? De que serve tantos jogos e tanto tempo, se no final o que decide tudo é o estado de cansaço das equipas? Repare-se no exemplo da Concacaf, que reúne as Selecções da América do Norte e Central, e que nunca tem, em regra, mais do que uma selecção que justifique a presença num Mundial. Pois, este ano, a Concacaf meteu quatro Selecções no Mundial (Estados Unidos, México, Costa Rica e Trinidad-Tobago). Tantas como a América do Sul, que tem regularmente umas cinco-seis selecções de qualidade. Porquê? Porque, segundo uma investigação do Panorama, da BBC, há muitos votos e muito dinheiro a circular entre a Concacaf e o seu presidente e a FIFA, de Joseph Blatter. De facto, a única razão para esta enxurrada de selecções e de jogos são os interesses financeiros e eleitorais de quem ocupa o poder na FIFA. Herança dos tempos do tão louvado Sr. Havelange... Imaginemos que se reduzia o número de participantes a 24, como já aconteceu em tempos. Divididos em seis grupos de quatro equipes cada, apurar-se-iam os primeiros de cada grupo e os dois melhores segundos o que teria desde logo a vantagem de tornar mais competitiva a fase de grupos. Depois, haveria uma eliminatória a menos (os dezasseis-avos finais), um jogo a menos para quem chegasse ao fim, um total de 40 jogos em vez dos actuais 64, e 22 dias de competição em vez dos actuais 31. Mais racional, mais competitivo, mais representativo e menos saturante para todos jogadores, público, organização.
Talvez fosse possível estudar também a possibilidade de realizar o Mundial noutra altura que não após o final dos campeonatos europeus, de modo a que as principais vedetas do Mundial, que jogam na Europa, não se apresentem no estado lastimável de um Ronaldinho Gaúcho.
Também seria necessário rever e uniformizar critérios de arbitragem com base na protecção do espectáculo e na repressão do jogo anti-desportivo, e evitar lançar mão de truques como penalties generosos e uma bola que faz curvas imprevistas no ar para obviar ao défice de futebol ofensivo. Mas, acima de tudo, o que é urgente e necessário é lançar uma campanha pública à escala global de defesa e promoção do futebol-espectáculo contra o futebol resultadista. E isso não é só à FIFA que cabe fazer: começa aqui, nas páginas da imprensa desportiva.
in "A BOLA", 2006.07.11
Aconteceu-me o que não era suposto poder acontecer a quem se considera quase viciado em futebol: adormeci durante a final do Mundial! Adormeci aí pelos 80 minutos, quando era claro que as equipas se arrastavam para o prolongamento, se não mesmo e voluntariamente, para os penalties, e acordei com o grito do locutor quando Zidane cabeceou à queima-roupa e Buffon mostrou porque foi considerado o melhor guarda-redes deste Mundial.
Infelizmente, estava pois acordado quando o mesmo Zidane foi incapaz de esperar só mais dez minutos para passar da história à lenda. O que lhe terá dito Materazzi para justificar aquele ataque de loucura se é que lhe chegou a dizer alguma coisa e o gesto demencial de Zidane não foi apenas o tributo que o génio paga à loucura?
Acabou assim, sem beleza, e decidido a penalties como não podia deixar de ser aquele que foi, provavelmente, o pior Mundial de todos os tempos. Pior ainda do que o Coreia-Japão, onde os génes do vírus que parece ter-se instalado na maior competição futebolística do mundo já eram evidentes, para quem os quisesse ver. Não sei a quantos mais mundiais destes poderá o futebol resistir, mas seria bom que as cabeças pensantes percebessem que não resistirá eternamente.
O que faz do futebol o espectáculo mais popular do mundo é a sua simplicidade de meios, de regras e de objectivos. Jogar futebol, gostar de ver jogar futebol, é a coisa mais natural e instintiva que existe num ser humano: basta uma bola e um jogador de cada lado e é possível ter futebol. Mas, seja com dois ou com vinte e dois, num campo de terra ou num relvado perante 70.000 espectadores, nenhum jogador e nenhum espectador se contenta com um tipo de jogo que se limite a fazer circular a bola de uns para os outros, sem nenhum outro objectivo que não fazer passar o tempo, à espera de um deslize do adversário ou do desempate por penalties. Quando treinava o FC Porto, Bobby Robson definiu uma estratégia tão simples quanto extraordinária: era preciso marcar golo nos primeiros dez minutos. Não era nos primeiros quinze: era nos primeiros dez. Com essa atitude, a sua equipa entrava determinada a ganhar o jogo desde o primeiro minuto e os adversários entravam logo intimidados.
Parece que não resultou mal: o FC Porto foi campeão, teve o melhor ataque e, sobretudo, deu espectáculo. Agora, ao mais alto nível, a regra é a inversa e o oposto do que cantava Gerardo Vandrei : «Vem, vamos embora, que esperar não é saber! Quem sabe, faz a hora, não espera acontecer».
O futebol foi inventado para que as pessoas se divirtam a ver ou a jogar. Não para que adormeçam em frente à televisão, morram de tédio nas bancadas ou de impotência em campo. Sem golos e sem liberdade para os artistas, não existe futebol apenas a caricatura científica dele, que nos vendem como resultado de grande trabalho, grande competência e grande modernidade. O que aconteceu na Alemanha foi o triunfo do resultadismo, a imagem de marca deste Mundial.
Vejamos: a Itália mereceu ganhar o Mundial? Nem sim, nem não. Mereceu tanto ou tão pouco como os outros candidatos.
Todos eles Brasil, Argentina, Alemanha, Inglaterra, França esperaram poder ganhar o Mundial através da mesmíssima fórmula posta em campo pelos italianos: o mínimo de riscos, o mínimo de desgaste, o mínimo de improviso, o mínimo de liberdade concedida aos artistas, próprios ou alheios. Ganhou a Itália, pois, porque nesse tipo de jogo é ainda a melhor.
Quem foi o melhor jogador do Mundial? Resposta adequada: ninguém. Não houve um só jogador que se destacasse de forma clara e regular, ninguém que tenha sido autor de uma só jogada de que nos lembremos daqui a um mês. Não houve um só jogo de encher o olho, um só que fique para sempre associado à memória deste Mundial. O melhor marcador da prova não foi além de cinco golos facturados e aquilo que ocupou as discussões durante o Mundial foram os penalties que houve e não houve, o excesso de cartões, as simulações e os mergulhos, e os efeitos caprichosos da bola teamgeist, eloquentemente inventada para trair os guarda-redes e assim suprir a incapacidade de marcar golos. E a imagem que ficará a marcar este Mundial (para além da excelente organização alemã, que é justo recordar) é a desgraçada cabeçada de Zidane em Materazzi.
Aparentemente preocupada com o que viu e com os comentários que foi ouvindo, a FIFA anunciou agora que vai fazer um seminário de reflexão com os treinadores das 32 selecções presentes para tentarem perceber porquê que se viu tão pouco futebol de qualidade neste Mundial. É assim como se a policia, preocupada com os assaltos a bancos, chamasse os chefes das principais quadrilhas de assaltantes para discutir as medidas a adoptar.
Toda a gente sabe que a fraca qualidade deste futebol é obra directa dos treinadores resultadistas, os teóricos do futebol de «expectativa e contenção», da «coesão defensiva», da «circulação de bola», da «redução de espaços» e da «consistência», que põem todas as equipes a jogar igual, as boas e as más, as que têm grandes jogadores de ataque e as que não têm: todas a jogar em 40 metros de campo, todas a defender atrás da linha da bola, como no andebol, todas reduzidas a um único avançado de raiz.
Por isso, e primeiro que tudo, o que a FIFA deveria fazer era juntar os 32 treinadores com algumas velhas glórias do futebol, ex-treinadores de equipas que fizeram história e representantes do público, para que estes explicassem àqueles que, a continuar assim, nem os mundiais nem o futebol têm grande futuro.
A segunda coisa a fazer era limitar esta diarreia de futebol em que está transformado o Mundial. São equipas a mais, jogos a mais, tempo a mais. De que serve ter uma competição com 64 jogos, se apenas quatro ou cinco valem a pena? De que serve tantos jogos e tanto tempo, se no final o que decide tudo é o estado de cansaço das equipas? Repare-se no exemplo da Concacaf, que reúne as Selecções da América do Norte e Central, e que nunca tem, em regra, mais do que uma selecção que justifique a presença num Mundial. Pois, este ano, a Concacaf meteu quatro Selecções no Mundial (Estados Unidos, México, Costa Rica e Trinidad-Tobago). Tantas como a América do Sul, que tem regularmente umas cinco-seis selecções de qualidade. Porquê? Porque, segundo uma investigação do Panorama, da BBC, há muitos votos e muito dinheiro a circular entre a Concacaf e o seu presidente e a FIFA, de Joseph Blatter. De facto, a única razão para esta enxurrada de selecções e de jogos são os interesses financeiros e eleitorais de quem ocupa o poder na FIFA. Herança dos tempos do tão louvado Sr. Havelange... Imaginemos que se reduzia o número de participantes a 24, como já aconteceu em tempos. Divididos em seis grupos de quatro equipes cada, apurar-se-iam os primeiros de cada grupo e os dois melhores segundos o que teria desde logo a vantagem de tornar mais competitiva a fase de grupos. Depois, haveria uma eliminatória a menos (os dezasseis-avos finais), um jogo a menos para quem chegasse ao fim, um total de 40 jogos em vez dos actuais 64, e 22 dias de competição em vez dos actuais 31. Mais racional, mais competitivo, mais representativo e menos saturante para todos jogadores, público, organização.
Talvez fosse possível estudar também a possibilidade de realizar o Mundial noutra altura que não após o final dos campeonatos europeus, de modo a que as principais vedetas do Mundial, que jogam na Europa, não se apresentem no estado lastimável de um Ronaldinho Gaúcho.
Também seria necessário rever e uniformizar critérios de arbitragem com base na protecção do espectáculo e na repressão do jogo anti-desportivo, e evitar lançar mão de truques como penalties generosos e uma bola que faz curvas imprevistas no ar para obviar ao défice de futebol ofensivo. Mas, acima de tudo, o que é urgente e necessário é lançar uma campanha pública à escala global de defesa e promoção do futebol-espectáculo contra o futebol resultadista. E isso não é só à FIFA que cabe fazer: começa aqui, nas páginas da imprensa desportiva.
in "A BOLA", 2006.07.11
sim mesmo o pior de sempre.
ResponderEliminarparece os mouros a jogar á bola, é só dar pau e simular faltas e depois querem ser campeões
MEU APOIO 100% AO SR.MST
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