Esta crónica não é de defesa da descentralização, nem sequer de uma defesa de transferência de organismos públicos e da administração pública em peso para a cidade do Porto. Não. Esta crónica é sobre bom senso, razoabilidade e sentido de justiça.
Comecemos pelo Verão de 2017, um dos mais se não o mais traumático para este pequeno país à beira mar plantado. Mais de uma centena de mortos em incêndios um pouco por todo o país, mas principalmente nas regiões afastadas dos grandes centros de decisão, dos grandes centros populacionais e industriais. Num país completamente espalhado ao longo da sua costas litoral e de costas completamente viradas para o seu interior, para a sua terra, para a sua floresta, para aqueles que ficaram nas pequenas vilas e aldeias desse Portugal fora, Pedrógão, esse nome quase impronunciável às portas de mais um Natal que se aproxima, devia fazer pôr a mão na consciência de muito boa gente. Mas não. Como sempre, o país não aprende com nada, não aprende com a sua história, muito menos com os seus clamorosos erros.
Depois de Pedrógão, debrucemo-nos sobre Lisboa, a capital, a cidade onde um T0 de 28 metros quadros, no Príncipe Real, pode custar mais de 300.000 €. A cidade onde um T0 na Rua da Prata chega a poder custar 2.000 €/mês. A cidade que bloqueia nos dias do WebSummit. A cidade que só não inunda todos os dias no Inverno porque efectivamente vive um período de seca. A cidade cujo trânsito se assemelha a Luanda. A cidade onde uma mera manifestação de polícias cria filas de trânsito de vários quilómetros. A cidade onde um apartamento é arrendado em menos de 24h. A cidade onde a pressão imobiliária e turística é tão grande e tão devastadora que afasta todos os dias centenas de famílias lisboetas para a periferia.
Depois de Pedrógão, foi fácil constatar que existe uma fatia significativa da população portuguesa que está neste preciso momento completamente ao abandono das mais básicas garantias de segurança que o Estado deve oferecer, seja em que domínio for. Os incêndios foram apenas a ponta do icebergue, mas é claro que toda aquela população foi abandonada há décadas pelo chamado Lisboagal: abandonados no plano político, no plano policial, no plano judicial, no plano industrial. Só não foram abandonados no que toca à construção de vias rodoviárias, por vários motivos menos transparentes que não cumpre aqui escrutinar.
Acontece que num país normal, a transferência da sede do INFARMED, a agência nacional de regulação do medicamento, seria vista como uma normal decisão executiva do Governo, certamente merecedora de elogios e críticas, como tudo na vida, mas sem este grau de loucura, insanidade e prostituição intelectual.
Costumo dizer que o problema da Lisboagal não são os próprios lisboetas, que são gente simpática e moderada, tal como a esmagadora maioria do povo português. O problema são aqueles que não nasceram em Lisboa, mas que por qualquer razão vieram parar a esta cidade e que agora se sentem cidadãos da capital do império, não se preocupando e até mesmo renegando as suas origens, sejam elas do Porto, Coimbra, Viseu, Braga, Portimão, etc. Isso ficou sublimamente patente no comentário absolutamente vergonhoso partilhado por um professor universitário de reconhecidos méritos como é Menezes Leitão, natural de Coimbra, cidade do conhecimento.
Depois do anúncio de António Costa sobre a mudança de localização da sede do Infarmed, seguiu-se um verdadeiro atentado ao Estado de Direito, sendo nós espectadores atentos de como as oligarquias podem de facto aprisionar e moldar as decisões governamentais. Foi ver partidos políticos do lado dos trabalhadores do Infarmed, dizendo que não podem ser prejudicados com esta mudanças, foi o próprio Primeiro-Ministro a dizer que a lei os protege, foi um tal de Paulo Baldaia, nascido no Porto, a dizer que os trabalhadores do Infarmed têm as suas vidas organizadas em Lisboa, foram jornalistas a criar peças informativas claramente tendenciosas, foram entrevistas no telejornal ao Rui Moreira, foi o diabo a quatro.
Tudo por uma razão simples: o Governo ousou retirar a sede de um organismo público da capital do império. Como sempre, ouvimos os chavões de sempre, como já tínhamos ouvido nas novelas da TAP ou da RTP: que o Infarmed é uma organização de topo com profissionais especializados e qualificados, que o Infarmed é visto a nível europeu como uma exemplo a seguir no que à regulação do medicamento diz respeito, etc. Elogios e loas públicas à grande actividade do Infarmed, como se previa.
Não se percebe o que é que mudará com a transferência da sua sede para o Porto, visto que na Invicta temos reconhecidamente a melhor faculdade de farmácia do país, as melhores faculdades de Medicina (São João e Santo António), o reputado IPATIMUP (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular) e a maior empresa nacional de medicamentos (BIAL). Só por estas quatro razões, a sede do INFARMED já deveria estar no Porto não em 2018, mas sim em 1998.
Diziam vários jornalistas que os trabalhadores no INFARMED têm compromissos assumidos em Lisboa, como empréstimos para compra de habitação, por exemplo. Caros centralistas de pacotilha, bem-vindos aos últimos 20 anos de vida da esmagadora maioria dos portugueses nascidos em Viana do Castelo, Braga, Porto, Viseu ou Coimbra!
Os jornalistas da nossa praça, sabemos bem, não são particularmente perspicazes, probos e rectos. Todos os fins-de-semana, a começar à sexta à tarde e a acabar ao Domingo à noite, milhares e milhares de portugueses saem e regressam de Lisboa, partilhando boleias, intercidades, alfa-pendulares ou camionetas, indo passar os fins-de-semana com as suas famílias ao Norte do País. Muitos, milhares, cada vez mais com o passar dos anos. Algum jornal ou algum televisão se lembrou de ir entrevistar alguma destas pessoas nos cais de embarque? Ter-se-ão esquecido que também os trabalhadores da CMVM no Porto, cuja operação fechou no início do mês, também têm compromissos assumidos na cidade do Porto? Ter-se-ão esquecido das dezenas de organismos públicos e privados que, nos últimos anos, se mudaramd e armas e bagagens para Lisboa?
No caso do INFARMED creio que a questão não é particularmente problemática. Dada a pressão demográfica na Região de Lisboa e Vale do Tejo, os trabalhadores desta agência poderão facilmente arrendar as suas casas e ir viver tranquilamente para o Porto, onde serão muitíssimo bem recebidos e de onde, creio, não mais quererão voltar a sair. E, caso de facto não queiram mudar-se para o Porto, certamente encontrarão trabalho nas dezenas de farmacêuticas que se concentraram nos últimos anos em Lisboa, precisamente por causa da proximidade ao INFARMED.
Depois de Pedrógão, se bem se lembram, o País clamou aos berros por uma maior descentralização e maior poder às suas regiões. Ora, logo após a primeira decisão que vai nesse sentido, o país – em especial o país jornalístico – rasga as suas vestes, falando nos custos logísticos desta mudança, das externalidades, dos trabalhadores especializados, etc, como se no Porto não existissem profissionais mais do que capazes de assumir funções no Infarmed e como se os 300km que separam as duas cidades fossem fáceis de fazer para Sul, mas muito difíceis de fazer quando o sentido é o contrário!
Não obstante aplaudir a mudança da sede do Infarmed para o Porto, creio que muito mais é ainda necessário fazer para que efectivamente o país se descentralize. É necessário colocar o Ministério da Educação por exemplo em Coimbra, os organismos industriais no Minho, as entidades ligadas à agricultura no Alentejo e daí por diante, retirando pressão demográfica a Lisboa e levando actividades económicas e movimentos para fora de Lisboa, lutando por impor uma efectiva repovoação e melhor distribuição do interior português. Caso isso não seja feito seremos todos responsáveis por um interior desertificado e abandonado e por uma Lisboa cada dia mais insuportável.
De uma coisa temos a certeza: o FC Porto não levarão da cidade do Porto!
Rodrigo de Almada Martins
Extraordinário post sobre o famigerado Infarmed e as subsequentes manifestações de provincianismo levadas a cabo pelas chamadas elites do estuário do Tejo.
ResponderEliminarSubscrevo por inteiro tudo quanto é dito no 6º Parágrafo. Ele só por si sintetiza e explica o frenesim a que vergonhosamente temos assistido. E faço-o com conhecimento de causa, pois trabalhei e vivi em Lisboa cerca de 3 anos, na década de Sessenta.
Cumprimentos
Caro RAM,
ResponderEliminarTem toda a razão neste seu texto.
Só venho lembrar que a área metropolitana de Lisboa são 3 milhões e tal de habitantes. Fora dela ainda existem 7 milhões de portugueses. Portugueses esses que em 1998 decidiram que preferem ter alguém a tomar decisões por eles num gabinete a 300 ou mais quilómetros de distância, do que pessoas com efectivo conhecimento das regiões onde habitam.
A macrocefalia lisboeta é culpa de todos nós, um Portugal culturalmente atrasado, onde reality shows ainda ocupam lugar de destaque em prime time televisivo.
É irónico, e paradoxal, que a única cidade do país a bater o pé a Lisboa seja precisamente o Porto, uma cidade onde na prática não nos falta nada. E as outras?
Por experiência própria, numas férias algures neste Portugal perdido, já tive o azar de necessitar de assistência médica para um familiar, e fui obrigado a fazer 70km para um hospital, simplesmente porque não existem serviços médicos capazes nas vilas e cidades fora dos grandes centros. Viver ou morrer em Portugal é uma questão de sorte. A sorte de se ter carro. A sorte de estar próximo de um hospital.
Comparo as 100 e tal pessoas que morreram este ano em incêndios, àquelas que morreram no Bataclan ou noutros atentados terroristas. Vitimas distantes. Vitimas perdidas em estudos e estudinhos de medidas a tomar num dia de S. Nunca à tarde. Pois se na verdade fossem 100 e tal lisboetas a morrer queimados, não haja dúvida que muitas cabeças já teriam rolado entre governantes, e existirião fundos infinitos para uma reconstrução à prova de fogo na Capital do Império.
Não tenho nada contra Lisboa, ou no facto dela ser a capital do país. Sou sim completamente hostil, a ter uma burocracia nacional que quase obrigue os serviços públicos do país a ter que pedir autorização a Lisboa para comprar rolos de papel higiénico. Sou contra um país que a fatia grossa dos fundos comunitários vá para a região que menos deles precisa. Sou contra um país que se faça um alarido imenso por greves nos transportes, quando em 80% do território nacional, o transporte que existe são 1 ou 2 camionetas diárias, na melhor das hipóteses.
Contudo, enquanto os portugueses se entreterem com novelas, pimbalhices de domingo à tarde e big brothers, está tudo bem.
Ou quase tudo...
Afinal ainda existe uma força VIVA fora da Capital.
O seu nome é FUTEBOL CLUBE DO PORTO!!!
Excelente comentário.
ResponderEliminarPobre e triste país em que vivemos.
Continuem com o excelente trabalho que todos têm feito em defesa do nosso FCP.
Abraço
O cerne da questão é a descentralização. Sou portuense e não se trata de transferir instituições para o Porto, mas sim distribui-las pela província, libertando também a faixa litoral. E o mote poderia (deveria) ser dado pelo Governo, com transferência planeada e atempada dos seus serviços/secretarias e não esperar que sejam os privados a tomar a iniciativa. Creio que se desenharia uma tendência ...
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