01 junho, 2017

FIM DE ÉPOCA: É PRECISO COLOCAR MAIS PÓ NAS NOSSAS FOTOGRAFIAS (OU QUIÇÁ PÔ-LAS MESMO A PRETO E BRANCO).


Em jeito de encerramento de temporada futebolística, estive presente no fim-de-semana passado no Dia do Clube, desta vez realizado em pleno Estádio do Dragão e com a presença de grandes nomes do FC Porto, desde dirigentes a ex-jogadores, passando por familiares do Mestre Pedroto até a jornalistas do Porto Canal, ou por nomes como a Dª. Maria Amélia Canossa, entre muitos outros. Um dia muitíssimo bem organizado, onde foi possível ver e sentir o pulso à família portista tal como antigamente: atletas, familiares, dirigentes e sócios próximos uns dos outros, sem distâncias e sem vedetismos de qualquer espécie.

Mais do que o discurso de encerramento do Presidente, o que mais entusiasmou os presentes foi, sem dúvida, a presença dos heróis de Viena. Eu, que gosto de observar e sentir estas coisas, percebi claramente que o que a plateia ali presente, mais do que ouvir os atletas contarem como foi, queriam era perceber porque é que foi, como foi possível. Queriam retirar, do discurso do Capitão João Pinto, do Bi-Bota e de Frasco algum segredo, algum relato escondido que lhes permitisse perceber qual foi o segredo que nos deu a primeira Taça dos Clubes Campeões Europeus.

Os adeptos querem desesperadamente encontrar outra vez o talismã, o santo graal que lhes permita perceber como voltar a ganhar. Quem não sabe porque ganha, não sabe porque perde, repete-se por aqui. E o FC Porto, numa encruzilhada, tenta procurar perceber como ganhou para voltar a ganhar no futuro.

Mas há algo que o torna difícil: esse algo é o peso da História. As primeiras memórias futebolísticas que tenho são no Estádio das Antas, nos inícios da década de 90, talvez 93/94, não sei precisar. Nessa altura eu já achava o Futebol Clube do Porto um colosso, grandioso, cantando e sentido que “oh campeão, o teu passado é um livro de honra de vitórias sem igual”. Não parava para pensar que, por essa altura, o FC Porto apenas tinha no seu palmarés 13 títulos de campeões nacionais e somente 3 troféus internacionais. Não interessava, no fundo. Aquele já era o clube que eu amava e mais título menos título o Porto era o maior.

Os tempos foram passando e lembro-me de nunca parar para olhar para trás. É que atrás não havia assim tanta coisa. A história não estava lá trás, mas sim à nossa frente, como uma bola que salta à altura do nosso peito e nos pede que enchamos o pé para a rematar. A história apenas existia não como figura recordativa mas como algo por fazer, por contar, por redigir, por escrever.

Durante largos anos não perdia tempo a recordar títulos passados – até porque havia poucos. Ir ganhar a Milão por 3x2 já era para mim algo de sensacional e único. E havia sempre algo novo por conquistar: um campeonato, uma taça, terminava a época e o importante era começar logo com a supertaça e por aí fora: domingo seguinte a ganhar para começar bem a época, quarta seguinte a ganhar para começar bem a Champions e por aí fora. Não havia tempo para rodar a cabeça e ver a estrada deixada para trás.

Acontece que ultimamente o prisma e o ângulo mudaram. O FC Porto cresceu habituado a ser um underdog, um clube de guerrilha, uma espécie de tribo invasora com o qual ninguém contava e que aparecia a surpreender tudo e todos, quem são estes?, de onde vieram?, de onde saíram?, porque jogam com tanta raça? O clube deu-se bem e ambientou-se a esse registo: os jogadores e os seus adeptos gostavam de entrar em terrenos alheios e ser assobiados, odiados, espezinhados, chamados de feios, porcos e maus. O clube enquadrava-se nesse registo e tirava o melhor partido dele. Era criticado, menosprezado, renegado, mas chegava aos relvados e ganhava, ganhava, ganhava. Sentia-se bem na pele de bárbaro invasor. Comia a relva se necessário. Era uma luta de afirmação.

Durante anos e anos, acusado pela capital do império de não ter história, de não ser um clube com pergaminhos na Europa, de não existir para lá das fronteiras do pequeno Portugal, de não ter um Eusébio, o clube tinha que fazer pela vida, lutar por ser conhecido e reconhecido, temido e respeitado.

O clube atingiu esse patamar, sem apelo nem agravo. Títulos de campeão aos rodos, bi, tri, tetra, penta, tetra de novo, outra Champions, uma Taça UEFA, uma Liga Europa, outra Intercontinental, três Supertaças europeias perdidas. Jogadores transferidos todos os anos por vários milhões para os melhores clubes do mundo, presença nos grandes certames internacionais. Passou a ser um velho habituée das soirrées europeias.

O FC Porto já não é mais aquele underdog. Passou a ser uma potência futebolística do Velho Continente, passou a ter história, passou a ter estórias para contar. Não por acaso os portistas começam agora a trabalhar nas suas recordações. Não é coincidência: passaram a ter tempo o fazer, quando dantes o tempo era consumido a pensar na próxima vitória, no próximo troféu, na próxima época.

Quando uma vez dei por mim a consultar uma página do instagram de fotos vintage & memorabilia do nosso clube, apercebi-me que de que mudamos radicalmente. Quando entro numa Loja Azul e vejo camisolas de 78/79 e de Viena à venda, apercebo-me que já temos de facto uma história e um peso nas nossas costas. Já somos um histórico, um peso-pesado do futebol europeu. Quando eu próprio me dedico neste blog a uma rúbrica como o FOTO-MÍSTICA, recordando fotografias e momentos míticos do passado, é porque algo mudou. Abro o meu facebook e vejo páginas a anunciar “hoje faz X anos que demos 5x0 ao slb, se não te esqueces partilha”, “Viena faz 30 anos, eu estive lá”, “faz hoje X anos que o Kelvin fez aquele golo aos 92 minutos”, “faz hoje X anos que fomos campeões na luz”. Tantas e tantas datas para recordar fazem com que o clube se concentre mais no passado que, de tão pujante, engole o presente e o futuro.

O clube não procura viver na nostalgia, longe disso. Mas tenta encontrar nesse passado uma forma de voltar às vitórias no presente. O problema é que vive numa encruzilhada, numa estrada com 4 caminhos, pois já ganhou tanto e tantas vezes, de tão diversas formas, que já não sabe qual o caminho a seguir desta vez.

Uns pedem uma aposta na prata da casa e nos jogadores nacionais, mas quando se ataca uma época com os Castros, os Josués, os Sérgios Oliveiras, os Licás e os Hernânis, surgem vozes a dizer que os títulos se ganham é com Danilos, Hulks, Belluschis, James e Falcões.

Se se aposta em Herreras, Brahimis, Olivers, Tellos, Imbulas e Coronas, surgem textos a dizer que foi com Paulos Ferreiras, Nunos Valentes, Costinhas, Maniches e Derleis que se construiu o Porto campeão europeu.

No caso presente do treinador, se o alvo é o inexperiente Ségio Conceição, uns querem a aposta num homem já rodado, com muitos anos de treino no estrangeiro, um novo Carlos Alberto Silva, um novo Robson, um novo Adriaanse. Se o alvo é o titulado Lucescu, surgem vozes a pedir um jovem sedento de títulos como Mourinho, Villas-Boas ou Vítor Pereira.

O clube tem já um passado invejável, colossal. Ser campeão no FC Porto já não chega. Jogar bem também não, porque vai sempre haver quem compara esse futebol ao do Porto de Sevilha. Se for campeão com 1 ou 2 derrotas, vão compará-lo ao consulado do Villas-Boas. Se jogar um futebol de transição, vão compará-lo a Jesualdo. Se jogar em posse, Artur Jorge e Villas-Boas são chamados à colação. Se jogar com 3 centrais, a ideia é de Adriaanse.

O nosso principal rival, pelo contrário, esteve grande parte dos últimos 30 anos sem títulos, na sombra do FC Porto, a assistir de mãos na cabeça às vitórias do rival nortenho. Humilhações atrás de humilhações, 7x0 em Vigo, 5x0 no Dragão, 0x5 na Luz, títulos perdidos aos 92 minutos, campeonatos ganhos em sua casa, reviravoltas impossíveis, o destino sempre a traí-los. Lembro-me do meu tio benfiquista, ovelha negra da família, me dizer um dia entristecido que o problema do benfica não era, como Simão Sabrosa havia dito numa entrevista, que “os adversários já não respeitavam a camisola do benfica, mas sim que os jogadores do benfica já não respeitavam a sua própria camisola”. Vivemos um pouco esses tempos, quando achamos que já não temos homens à moda antiga, que dêm a vida e a alma pelo clube, quando achamos que já ninguém é suficientemente bom para envergar a nossa camisola.

Um certo dia, no final da guerra fria, Francis Fukuyama teorizou o fim da história. O FC Porto julgou também que o golpe de génio/sorte de Kelvin significava uma espécie de fim da história futebolística nacional. Pensou que havia dado a estocada final no rival, que a partir dali a luta estava ganha, que o rival nunca mais se levantaria. Mas, tal como Fukuyama veio a reconhecer, a sua teoria estava errada.
A história está sempre aí à nossa frente, pronta a ser escrita, pronta a ser conquistada. Ao ver os sócios, os ex-jogadores e os dirigentes ali presentes lembrei-me disso. O FC Porto de antes falava em ganhar, ganhar, ganhar, ganhar, ganhar. Dizia-se que o clube não se cansava de ganhar. Não ganhar como no passado, não ganhar como Artur Jorge ou como Mourinho, mas apenas em ganhar, fosse como fosse, desse lá por onde desse. Notei a diferença quando ouvi o apelo do Bi-Bota aos sócios: “vamos voltar a ganhar como o fizemos no passado, todos unidos e sem divisões, junto do nosso grande Presidente Pinto da Costa”.

Percebo a mensagem, mas o mindset devia ser outro. O clube não precisa de procurar respostas no passado para a crise do presente. Precisa de viver o aqui e o agora, enfrentando os problemas de frente livre dos condicionalismos do passado.

Durante muitos anos, o nosso rival enchia a boca para falar das vitórias dos anos 60, do Eusébio, do Torres, do Coluna, das duas taças das campeões. Nós encolhíamos os ombros, ríamo-nos e continuávamos a ganhar. Curiosamente, depois da morte de Eusébio, o rival venceu logo 4 títulos. De rajada. Não será coincidência. Títulos esses que nos pareceram passar a correr. De repente, num ápice, já estamos há 4 anos sem ganhar. Por contraponto, a epopeia do Penta pareceu-nos passar vagarosa, lentíssima, tarefa árdua, pois só nós sabemos o que nos custou a ganhar, está escrito na nossa memória a sangue, suor e lágrimas. Estes 4 anos, pelo contrário, passaram a correr, pois é algo que queremos esquecer, não enfrentar, pôr para trás das costas como se fosse uma partida que o tempo e a história nos pregou, um mero hiato entre as nossas (óbvias) vitórias.

Não estamos a olhar de frente para o presente. Quando referia a alguém a gravidade de 3 anos sem ganhar, surgia logo a história de Octávio Machado e posterior contratação de Mourinho. A história repete-se, sim, mas não é cíclica nem obedece a esquemas pré-estabelecidos. E o passado pesa e conta muito, porque há sempre um termo de comparação recente. Há já muitos anos que o nosso rival não tinha uma história feliz para olhar e para comparar. Grande parte dos benfiquistas que festejam agora o seu tetra nunca viram provavelmente sequer um bi-campeonato do seu clube. O grau de exigência é menor, o limiar do contentamento é mais pequeno, há menos passado atrás das costas e o que há é mais longínquo. Há menos babagem para acondicionar e, por isso, o carro vai mais leve.

De repente vejo muitos portistas debaterem-se com problemas que lhes parecem insolúveis: eles controlam toda a comunicação social, eles têm um poderio económico maior, eles têm o controlo dos órgãos de decisão, eles têm benfiquistas infiltrados em todo o lado. Não percebem que isso foi sempre assim e que o problema não está aí, mas sim na forma com se encaram esses mesmos obstáculos. Dantes atacavam-se de frente, de peito aberto, de cabeça erguida; hoje não encaramos o presente, vivemos refugiado num passado conquistador, mas que não paga contas nem nos põe o pão na mesa.

E a verdade é que, a determinado momento, o FC Porto relaxou, pois julgou que o ajoelhar de Jesus havia significado a rendição total e absoluta, o tal fim da história. Vai daí e decidiu despedir o treinador campeão e atacar a época seguinte na esperança de desencantar em Paulo Fonseca o santo graal que lhe permitiu descobrir entre a bruma um Mourinho e um Villas-Boas, qual Pedroto reencarnado.

Para finalizar que já vai longo, muitos portistas revoltaram-se com o jornal A Bola por ter colocado uma foto de João Pinto em Viena com a taça a preto e branco, acompanhada da legenda “foi há 30 anos”. Os portistas indignaram-se, pois na altura o jogo foi transmitido em directo e a cores. O que querem dizer com isso é que a nossa história gloriosa é mais recente, é mais viva, não é tão antiga. Nada mais errado a meu ver, A Bola fez-nos um grande favor. Precisamos nós também de empurrar as memórias para o fundo mais fundo da gaveta, pô-las a preto e branco, quase impossíveis de recordar, como quando tentamos recordar as nossas tardes de liceu ou as manhãs de primária. Precisamos de colocar mais pó nas fotografias, mais riscos pretos nos nossos vídeos, precisamos de amarelecer os jornais guardados, precisamos de embaciar as nossas taças. Precisamos de nos libertar do peso da história, de fazer um drible e passá-la das nossas costas para a linha do horizonte, voltando outra vez a correr em direccção a ela para a desenhar outra vez. Precisamos, no fundo, de não poder desculpar os erros do presente com as vitórias do passado. Nem de achar que há fórmulas estabelecidas e artes mágicas para alcançar o sucesso que não passem por algo muito simples e que tem faltado: trabalho, trabalho e trabalho.

Despeço-me até à nova época, com um forte abraço a todos os Portistas!

Rodrigo de Almada Martins

4 comentários:

  1. Perfeito, mas "a necessidade de colocar mais pó nas nossas fotografias" não chega ....

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  2. Parabéns pelo artigo. Revejo-me integralmente no teor do mesmo. Saudações desportivas.

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  3. Muito boa análise, caro Rodrigo.

    Só faltou assumir, sem reservas, que a solução já não passa pelo nosso grande presidente. O Tempo, esse sim, já passou por ele, como passa e passará por todos nós.

    O que nos falta, na realidade, é interiorizar que é tempo de fazer surgir novas ideias, novas propostas, trazidas por novas pessoas. Sem dramas nem tabus.

    Um abraço Portista

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  4. Texto inspirado e inspirador. Muito obrigado.
    Temos de recomeçar por recuperar o campeonato. Mas atenção, sejamos também diferentes nos piores momentos - permaneçamos unidos - o nosso Porto nunca esteve assim tão perto da desgraça, como constantemente nos querem fazer acreditar repetindo a mesma balela até a exaustão, nem assim tão longe dos melhores, como tu mesmo referes. Contudo não me parece tanto que o nosso problema seja tanto o peso das conquistas, mas antes o medo do não voltar a ganhar que se tem manifestado em clara ansiedade (demonstrada nos jogos decisivos como no jogo com o Setúbal). Acho que por essa razão e nunca desprimorando a parte técnico-tática, não é assim tão descabida a ideia de precisarmos de um treinador sem medo, que consiga transmitir, internamente, isso aos jogadores. Temos um problema de confiança.
    Mais cedo ou mais tarde vamos ganhar e se todos, adeptos e jogadores, conseguirmos reaver aquela nossa confiança, de termos a certeza absoluta que vamos ganhar o próximo jogo, vai ser já amanhã e o tempo vai voltar a passar a correr!
    António F.

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