16 março, 2018

FOTO MÍSTICA #10 - Vítor Baía [2004].


O FOTO-MÍSTICA é um espaço de registo e divulgação da história do FUTEBOL CLUBE DO PORTO. O objectivo é recordar os seus momentos, os seus valores, os seus princípios, a sua cultura, a sua marca, a sua dimensão, as suas gentes. Numa palavra: a sua MÍSTICA. Todos são convidados a participar nesta viagem. Se pretenderem ver divulgada uma fotografia em especial, podem enviar e-mail para rodalma@hotmail.com .


Época: 2003/2004
Local: Arena Auf Schalke, Gelsenkirschen
Data: 26.05.2004
Resultado:  FC Porto 3 x 0 AS Mónaco
Aparecem na fotografia: Vítor Baía, Ludovic Giuly

Talvez não seja a fotografia mais icónica de Baía nos vários anos que vestiu a camisola azul e branca, mas é talvez a acção mais importante do 99 em toda a sua carreira, a par talvez daquela saída destemida aos pés de Van Nistelrooy, meses antes em Inglaterra. Na Arena Auf Schalke, a primeira parte decorria disputada e tremida, indecifrável, podendo cair para qualquer lado. O ataque monegasco era temível, com Morientes e o supersónico Giuly. O jogo estava perigoso e, aos 23 minutos, o FC Porto não consegue controlar a profundidade do ataque dos homens do principado e Giuly surge isolado na cara de Baía.

O guardião português parece adivinhar o lance e, lesto e felino, corre rápido para a bola e, de forma corajosa, varre o lance em carrinho, apanhando Giuly no seguimento do tackle. A jogada é um verdadeiro 2 em 1: Baía afasta o perigo e Giuly sai mal-tratado da jogada, pedindo a substituição. Para o seu lugar entra o croata Dado Prso, um bom jogador, mas muito semelhante ao estilo de Morientes. O Mónaco ficava assim com dois avançados lentos, demasiado fixos, posicionais, mais estáticos, sem capacidade de atacar e surpreender na profundidade. A partir daí o jogo muda irresistivelmente, o FC Porto consegue subir o bloco sem preocupações nas suas costas e a partir daí é história.

Só percebi o significado de Baía no FC Porto já mais tarde, ao ler a auto-biografia de Morrissey, o grande vocalista dos Smiths. Ao descrever como era viver na Manchester da sua juventude, nos anos 60, o britânico refere – ele que nem é um fã do desporto-rei – a epifania que foi a aparição de George Best naquela cidade.

De repente, a Manchester da chuva, do cimento, a Manchester dos operários fabris, a cidade dos bairros industriais, da poluição, do carvão, do frio, do gelo, do céu de negrume, essa Manchester de cores tristes e depressivas, vê surgir o astro de Best, um super-jogador que namorava as top models mais giras, que surpreendia com cortes de cabelo extravagantes, que usava roupas fashion, que era bonito e que tinha estatuto para quebrar as regras e fazer tudo o que lhe apetecesse. É essa a verdadeira dimensão de Best e é por isso que o seu nome ficará para sempre na memória dos red devils.

Essa é também, de certa forma, a dimensão de Baía na cidade do Porto. Nos finais dos anos 80 e à entrada dos 90’s, o FC Porto era o clube dos andrades, lá do Norte, uma espécie de aldeia gaulesa povoada por feios, porcos e maus. E de repente, no meio de um plantel de homens de barba rija, surge um menino bonito chamado Vítor Baía.

Baía, além disso, tinha um porte de princípe, majestático, intimidante. E, cúmulo dos cúmulos, o rapaz da Afurada falava bem, era descomplexado, enfrentava os jornalistas, gostava de palco, das câmaras. Baía foi uma espécie de George Best para os meninos dos recreios cinzentos nortenhos, cheios de poças de água, de gravilha e terra húmida, que tinham nele o seu ídolo e que, por causa dele, sentiam ainda mais orgulho em dizer-se portistas.

Baía cedo causou ciúmes e invejas na capital. Como era possível que aquele rapaz elegante e ultra-seguro nas balizas tivesse aparecido nas margens do rio Douro? Iniciava-se aí uma relação ambígua entre Baía e a comunicação social. Se por um lado os repórteres o perseguiam, por outro notava-se a forma invejosa e desdenhosa com que se lhe referiam. Quando Baía frangava, era feriado em grande parte do País e as suas falhas eram celebradas e motivo de escárnio. Os Donos da Bola, esse programa odioso, por exemplo, não lhe davam descanso.

Capa de revistas cor-de-rosa, Baía acompanhou sempre na ribalta as várias fases de jogador de futebol em Portugal. Quando apareceu, os jogadores ainda equipavam de calções curtos e roupa justa. Quando terminou a carreira, Baía já usava calções largos e camisolas bem mais confortáveis e era já um senhor respeitado no futebol mundial, a par de muitos outros da sua geração, como Figo, Paulo Sousa, Rui Costa ou Fernando Couto.  O futebol tinha mudado radicalmente e ele soube sempre adaptar-se sem problemas de maior.

Depois de uma passagem azarada por Barcelona – onde Valdano captou a sua áurea dizendo que até a frangar Baía tinha estilo – o menino bonito dos azuis-e-brancos voltou às Antas ainda a tempo de vencer mais títulos nacionais e os troféus europeus de Sevilha e Gelsenkirschen.

Afastado de forma reles e baixa do Euro 2004, quando era inequivocamente o melhor guarda-redes português e um dos melhores da Europa, a par de Casillas, Buffon e Van der Saar, nunca se deixou ir abaixo e apenas pediu a Scolari uma explicação, fosse ela qual fosse. Obviamente que esta nunca chegou, mas de certa forma Baía não se importou. Ganhou a competição mais importante de futebol a nível de clubes e foi eleito o melhor guarda-redes da Europa nesse ano, enquanto que a selecção morria na praia, afogada nos seus fantasmas e na Nossa Senhor do Caravaggio.

O fantasma de Baía acabou por não pairar no Dragão muito por culpa de Helton, que soube agarrar o lugar de forma natural, numa sucessão sem dramas, com aceitação e compreensão da parte de Baía, que até na hora da saída foi um senhor, ao perceber claramente que estava na hora de passar o testemunho. É verdade que depois até houve Iker, mas é hoje indiscutível que a dimensão e o nome de Baía são inigualáveis. Se assim não fosse, em que outro clube do mundo, o maior monstro de sempre das balizas do futebol mundial, Casillas, diria, na sua apresentação, que era grande fã do 99 dos Dragões?

Ainda hoje no futebol amador e nas camadas jovens muita gente adopta o número 99, ainda hoje se diz que uma grande defesa é uma defesa à Baía, ainda hoje se comparam os grandes guarda-redes ao Vítor. A sua áurea é insuperável e por tudo isso, talvez até mais do que pelo que fez dentro dos postes, Baía é o melhor guarda-redes de sempre do FC Porto.

O cântico que os portistas lhe dedicavam, logo depois do famoso “E salta Baía; E Salta Baía olé olé”, é exemplo da dedicação e devoção que lhe concediam:

Seja de Noite ou de dia
No Dragão ou em qualquer estádio
99 é o Baía
Defende o Porto em todo o lado
BAÍA! BAÍA! BAÍA!

Rodrigo de Almada Martins

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