Dá-me enorme tristeza a forma como saí do FC Porto
Esta pode não ser a última entrevista de Jorge Costa como futebolista profissional. Depois de meio ano no Standard Liège e de uma rescisão aqui explicada, passa agora pela fase de decisão. Só mesmo um projecto que esteja de acordo com parâmetros que estabeleceu o levará a prosseguir a carreira, pelo menos por mais um ano. Se isso não acontecer, será o fim. Seguem aqui algumas confissões importantes, focando temas até hoje nunca abordados profundamente. Em particular, a saída do FC Porto e as marcas deixadas.
Ao longo destas quatro páginas, o antigo capitão portista, um símbolo e uma referência para sempre, fala, claro, do clube do coração, das mudanças por que está a passar, num olhar de quem está autorizado para o fazer pelo muito que viveu no FC Porto.
Jorge Costa não tem dúvidas que o dragão está a mudar a face e revela alguma preocupação pelo diluir evidente de uma determinada mentalidade que ganhou títulos. A mística, a tal mística, pode morrer? Sobram Baía e Ricardo Costa dos jogadores formados no clube. Não era assim, não senhor, mas ao mesmo tempo vê toda a legitimidade nesta mudança, pelo menos, enquanto forem sendo conquistados títulos.
Diz claramente que agora só a Direcção pode passar ao balneário o tal espírito portista. Esclarece, claro como a água, que não acredita que Pinto da Costa tenha tido algo a ver com a sua dispensa, ao contrário do que já tanto se comentou, e continua a ver no presidente um dos obreiros da grande força que é o clube do Porto.
Eternamente apaixonado pelo dragão, porque
«quem nasce portista vai morrer portista».
Impecáveis no Standard
— Não se percebeu muito bem a rescisão com o Standard Liège...
— Tomei essa decisão essencialmente por razões pessoais. Estava numa fase da minha vida em que surgiram outras prioridades. Não se passou nada de anormal. As coisas correram-me bem, tinha mais um ano de contrato. Foi uma opção minha. As pessoas, nomeadamente Luciano D'Onófrio, foram impecáveis comigo durante os seis meses que lá estive. O Luciano foi de uma correcção enorme quando lhe disse que gostaria de rescindir o contrato.
— Foi um ano muito difícil?
— Essencialmente, foi um ano complicado. Mais uma vez tive de mudar completamente a minha vida. Tinha os miúdos na escola em Portugal e não deu jeito nenhum ter de alterar toda a minha vida. Mas tive a felicidade de ir para um clube onde fui muito bem tratado, contei com o Sérgio Conceição, que foi fundamental na minha adaptação. Se tivesse ido para outro clube que não o Standard Liège iria ter mais dificuldades. A adaptação acabou por ser muito fácil.
— Os objectivos do clube é que falharam... O título, nomeadamente.
— Falhámos o objectivo principal. Houve muita gente no clube que ficou contente com o segundo lugar e pelo facto de, pela primeira vez na história, o Standard ir a uma primeira eliminatória da Liga dos Campeões, mas estivemos mais perto ainda de conquistar o campeonato e a Taça da Bélgica. Desportivamente não foi um ano mau para o Standard, mas com outra mentalidade poderia ter sido muito melhor. Mais ambição, talvez.
Uma grande desilusão
— Quando diz que foi um ano difícil fala, obviamente, da sua saída do FC Porto. Foi uma surpresa para si?
— Mais do que uma surpresa, foi uma desilusão pela forma como as coisas aconteceram, porque poderiam ter corrido de uma forma mais positiva.
— Deve ser estranho ser dispensado e ouvir elogios constantes... Um grande profissional, o «senhor Porto»...
— Um bocadinho... Mesmo na hora em que vim embora, em Dezembro, recebi elogios da parte do treinador. Não posso e nem tenho nada a apontar ao treinador. Desde o estágio do início de época que ele foi frontal comigo e me disse que dificilmente poderia jogar naquela equipa. Durante os seis meses que lá estive tentei contrariar as ideias dele, que não mudaram, e portanto ele também não tem nada a apontar-me, porque, desde o primeiro dia, fui sempre um profissional sério. Ajudei, dentro das minhas possibilidades e funções, todas as pessoas da estrutura. Não há nada que possam apontar ao meu comportamento. Aliás, os fartos elogios provam isso mesmo, porque não acredito em hipocrisias quando as coisas são tão evidentes e tão repetidas.
— Sentiu-se injustiçado?
— Tinha todas as condições para jogar naquela equipa, para continuar ali a minha carreira. Por entender isso, optei por sair, não para provar alguma coisa a alguém, mas porque me queria sentir útil a fazer aquilo que mais gosto que é jogar futebol. No meio de todo este processo, só lamento que, provavelmente antes do início da época, o meu destino já estivesse traçado. No mínimo, podiam ter evitado o que passei.
— Quando diz isso baseia-se em quê?
— Nessas férias antes de se iniciar a época, saíram notícias em que falavam em mim como possivelmente integrando a equipa técnica, o que me faz pensar que já havia quem pensasse que não teria valor para fazer parte do plantel.
— Alguém lhe colocou essa possibilidade de fazer parte da equipa técnica?
— Não, por isso é que digo que depois de tantos anos ligado ao clube, de tanta dedicação, de tantos títulos conquistados, penso que merecia, se essa era a ideia das pessoas, no mínimo ser informado.
— E se essa hipótese lhe tivesse sido colocada?
— Não sei o que faria porque realmente não aconteceu. Provavelmente não aceitaria porque me sentia em condições de jogar. Mas ficava bem se não tivessem deixado a situação prolongar-se.
— Há mágoa, mesmo a esta distância?
— Claro que há mágoa, porque acabei a minha ligação de quase 20 anos ao clube. A forma como aconteceu não foi bonita. Hei-de ficar sempre triste pela maneira como acabei a minha ligação ao clube a quem dei tudo e que me deu muito.
— Foi mais dramático do que quando saiu para o Charlton?
— É evidente que foi mais dramático. Toda a gente sabe porque saí da primeira vez para o estrangeiro. Tinha o Mundial à porta, era mais novo, sabia que provavelmente iria voltar. Desta vez foi o acabar de uma ligação que, pelo menos como jogador, nunca mais voltará a acontecer.
Com um bom projecto...
— Nesse tempo todo, nesses seis meses em que não jogou, como é que as pessoas reagiram consigo?
— Senti muito carinho das pessoas, mesmo quando as coisas corriam bem no FC Porto. Conseguiram... conseguimos um Campeonato e uma Taça, foi um ano positivo. Mesmo na hora dos últimos êxitos, já sem lá estar, senti e ainda hoje sinto da parte dos adeptos e dos simpatizantes do FC Porto um grande carinho e recebo muitas mensagens de conforto.
— Portista até ao fim, apesar dessa mágoa?
— Quem é portista há-de morrer portista.
— Está, então, no princípio do fim da carreira?
— Não acabou mas está próximo de acontecer. Neste momento todos os cenários são possíveis, porque não tomei ainda uma decisão final sobre o que irei fazer. Mas claro que o fim da minha carreira está próximo.
— O que é que o levaria a continuar?
— Depende de um projecto bom. Nesta fase posso dar-me ao luxo de escolher o que quero, de acordo com o meu estatuto no futebol e que não me obrigue a mexer com a família. Só um óptimo projecto em que me sinta bem é que me motivará para continuar a jogar. A nova época está a começar agora e a minha prioridade será sempre o futebol. Se não surgir um projecto que me empolgue, há sempre outras coisas para fazer. O futebol fará sempre parte da minha vida. Até posso estar dois ou três anos sem fazer nada, a preparar-me para regressar um dia. Quem fez uma vida toda ligada ao futebol, dificilmente se desliga. Se acabar a carreira agora, hei-de voltar um dia.
— Como treinador?
— Posso mudar a minha ideia, mas ser treinador de futebol não faz parte das minhas prioridades. Como jogador a minha era acabou, o que tinha a dar já dei. No futuro, o FC Porto há-se ser sempre a prioridade.
Claro que trabalharia com Scolari...
Jorge Costa deixou a Selecção Nacional depois do Mundial de 2002, mas revela aqui que teve hipóteses de regressar. Scolari admira-o, o antigo capitão portista também nutre simpatia pelo seleccionador, embora mantenha discordâncias sobre as ausências de Vítor Baía e Ricardo Quaresma no Mundial da Alemanha...
— Custou-lhe muito abdicar da Selecção?
— Nos primeiros jogos, custou-me muito olhar para a Selecção e não me ver lá.... Houve uma altura antes do Euro em que podia ter voltado, mas já tinha tomado a minha decisão e não achei correcto, depois de ter perdido os jogos particulares, regressar só para o Europeu.
— Disse que podia ter regressado. Houve alguma indicação nesse sentido?
— Sim, da parte dos responsáveis.
— Trabalharia com Scolari?
— Claro que sim. Tive a oportunidade de conversar com ele três ou quatro vezes, e sei, porque falo com algumas pessoas, que tem uma certa admiração por mim, pela minha forma de ser e de jogar, e pela maneira de estar em campo e na vida. Ele devolveu a alegria aos portugueses, devolveu a Selecção aos lugares que merece. Fez um trabalho fantástico e tem uma maneira de ser que me agrada.
— Hoje é um fã incondicional da Selecção...
— Sim, também. Tal como os outros 10 milhões... Há quem tenha inveja do sucesso, mas essa é a lei da vida. Sei que neste último mês vivi como os outros portugueses: vivi feliz.
— Mas houve opções polémicas do seleccionador, algumas que mexeram com companheiros seus, quando ainda estava no FC Porto... O Vítor Baía, o Quaresma... Tomaria as mesmas opções de Scolari em deixá-los de fora?
— Não, como seleccionador, não as tomaria. O Vítor e o Quaresma mereciam fazer sempre parte do grupo de eleitos. A grande maioria dos portugueses pensa o mesmo. Mas não podemos deixar de apoiar o nosso país por causa de opções técnicas do seleccionador. Ele tem de fazer as suas opções e leva aqueles que pensa serem melhores ou que lhe dão mais garantias. Pessoalmente não concordo, mas não deixo de apoiar a Selecção por causa disso.
— Mas gosta do tipo de futebol que ele coloca em campo? Portugal não é tão espectacular como era, por exemplo, quando o Jorge Costa esteve no Europeu de 2000 ou no Mundial da Coreia...
— Sim, mas no último Europeu, em 2004, fizemos jogos muito bons. Quanto a este Mundial, temos de ser realistas. Em primeiro lugar, não foi um torneio muito bem jogado. Em segundo lugar, preferi disputar um lugar no pódio do que ter jogado muito bem e ter vindo para casa mais cedo, como aconteceu, por exemplo, em 2002.
— Acha que um Mundial é mais fácil do que um Europeu?
— Até determinado ponto é mais fácil. A fase de grupos, principalmente.
— No Europeu só faltam, praticamente, a Argentina e o Brasil...
— Respondo com um exemplo: no Euro-2000, o nosso grupo era a Inglaterra, a Alemanha, Portugal e a Roménia. São quatro equipas equilibradas. Em 2002 e 2006, nos Mundiais, tínhamos duas boas equipas e duas equipas mais fracas. Nos oitavos-de-final temos as melhores equipas europeias, mais o Brasil e a Argentina.
Mourinho, o melhor
— Não o choca ouvir dizer que, se Scolari for embora, Portugal anda vinte anos para trás?
— Não concordo.
— Não será um atestado de incompetência aos treinadores portugueses? Parece que não há mais ninguém no planeta...
— Há treinadores portugueses no mínimo tão bons como Scolari. Se ele for embora — e espero bem que não, porque já demonstrou que é capaz de nos dar alegrias —, penso que há outras boas opções para Portugal.
— José Mourinho?
— Esse não é uma boa solução. É a melhor opção que Portugal pode ter.
— Hoje já pode dizer que o Mourinho foi o seu melhor treinador de sempre?
— Sem dúvidas. Tinha trabalhado com ele quando era adjunto do Robson. Foi, juntamente com Carlos Queirós, o treinador que mais me ensinou. Aprendi com todos e de todos retirei alguma coisa — mesmo sobre aquilo que não se deve fazer — que pode ser muito útil.
— Há lobbies na Selecção?
— Se há, também passam ao lado. Nos últimos anos, ninguém pode colocar em causa o ambiente entre os jogadores da Selecção.
— O que é que mudava no futebol?
— Se calhar só dava protagonismo a quem o merece, ou seja, aqueles que dão a cara em campo, os futebolistas.
in “A BOLA”, 2006.07.12