Depois de quatro anos sem ganhar, era mais ou menos consensual que o FC Porto precisava de algo que rompesse com o passado recente, algo que mudasse radicalmente a forma como as suas equipas se apresentavam em campo, a capacidade mental com que iam para jogo, o compromisso, a capacidade de abrir as defesas contrárias, a mentalidade em momentos adversos do jogo, a resposta dos jogadores perante arbitragens encomendadas. Havia que devolver às equipas do Porto a máxima pedrotiana do clube: entrar em campo, todos os jogos, para ganhar.
Lopetegui e NES eram treinadores abnegados e competentes, mas aos quais faltava claramente qualquer coisa, fosse o conhecimento detalhado daquilo que é o futebol nacional, fosse aquela coisa etérea a que os azuis-e-brancos chamam de mística. Por uma razão ou por outra ficava sempre a sensação de que as nossas equipas falhavam nos momentos decisivos e que, por outro lado, também não faziam tudo o que estava ao seu alcance para atingir os objectivos propostos.
O termo
Penta travestido de vermelho corria o risco de claramente pôr fim a um ciclo de 35 anos em que o FC Porto foi claramente dominador no panorama futebolístico nacional. Seria algo com que os portistas dificilmente conseguiriam lidar, habituados que estavam a dizer, vaidosamente, que
todo o mundo tenta, mas só o Porto é penta.
Sérgio Conceição, homem da casa, entra no clube no momento mais difícil dos últimos anos, mas também paradoxalmente no momento ideal. Creio seriamente que, no ano transacto, fruto do caso dos e-mails levantado em horário nobre no Porto Canal logo depois dos festejos do tetra benfiquista, o FC Porto iniciou a época 17/18 com 3 pontos de avanço sobre o seu rival directo. Do ponto de vista psicológico, o então campeão iniciou a época algo fragilizado, atormentado e acossado pelo que vinha sendo colocado na imprensa e visto na posição de se ver questionada a veracidade dos títulos conquistados nas temporadas recentes.
Por outro lado, no plano interno, Sérgio Conceição herdava um
Mar Azul em crescendo, fruto de uma união surgida últimos meses do mandato de NES, como reacção às escandalosas arbitragens desse final de temporada. Pese embora não ter sido suficiente para alcançar o título, notava-se que algo estava ali a nascer, a despontar: era o tal
Mar Azul, ainda envergonhado, mas claramente a salivar por alguém que o potenciasse.
E essa maximização do
Mar Azul dá-se com um nome: Sérgio Conceição. Qual cavaleiro salvador, vindo de França para auferir salário consideravelmente menor, regressa a casa o filho pródigo.
Sérgio Conceição não foi apenas mais um jogador do FC Porto. O clube teve vários ex-jogadores que seguiram carreiras profissionais de treinador, mas nem todos têm aquele
clutch necessário para treinar o clube. Sucede que o perfil de Sérgio-treinador é exactamente igual ao perfil do Sérgio-jogador: raça, ambição, ódio pela derrota, mau feitio. No fundo, um estilo muito portista de
antes quebrar que torcer, de comer a relva.
E aqui entra a importância do contexto histórico de Conceição no Porto. Sérgio carrega consigo o legado de vitória do FC Porto, a génese
pedrotiana por excelência. Não é por acaso que a sua cultura de balneário e de união do grupo de trabalho tem tanta importância com SC, ela deriva do valor que António Oliveira dava a isso nas Antas. E não nos podemos esquecer de que Oliveira foi o discípulo por excelência do Mestre Pedroto.
A mentalidade que impregna nas suas equipas, o crescimento que fomenta em cada jogador, a capacidade de união do grupo de trabalho, os dotes comunicacionais agressivos e directos, sem medo da imprensa e sem papas na língua, nem necessidade de agradar a empresários, são tudo características que são dele, mas que podiam também ser de Oliveira ou de Pedroto.
Uma postura de independência, mesmo dentro do próprio clube. E isso, com o Presidente ao leme, não se pode dizer que seja fácil de conseguir. Por isso o disse, no final da época passada, que era curioso ninguém ter reparado que este foi o primeiro título azul-e-branco em que o treinador foi mais aplaudido que o próprio Presidente. E isso nunca aconteceu, nem com Mourinho, nem com Villas-Boas, que até lograram feitos maiores.
Não é por acaso que Sérgio Conceição ganha duas vezes seguidas nos Barreiros, nem é por acaso que SC se mostra tão compenetrado na Taça da Liga. Nem é por igual acaso que SC criou a tal roda no final dos jogos. Há um conhecimento profundo do clube, da sua essência, das suas guerras e dos seus infortúnios, dos seus auspícios e das suas desgraças, dos seus dramas e manias, que gera uma transcendência naquilo que SC representa para o FC Porto.
SC pode não ser o melhor treinador que já passou pelo FC Porto – e para mim não é: tem que melhorar consideravelmente na questão do controlo do jogo. As suas equipas são montadas e estruturadas de base para dominar as partidas, mas não para as controlar. Falta-lhe ainda fazer o trajecto de Sevilha até Gelsenkirschen, a tal mudança de
chip que permitiu a Mourinho deixar de ter apenas uma equipa que praticava um grande futebol para uma equipa manhosa que controlava todos os momentos de um jogo de futebol. A primeira equipa ganha uma Taça UEFA, mas só a segunda consegue vencer uma competição como a Champions.
SC tem ainda um longo caminho no sentido de poder transformar a sua equipa numa máquina controladora dos adversários, mas já é desassombradamente um treinador que marca uma era.
Daí que, creio, o FC Porto tem aqui a oportunidade de ouro de perceber que os grandes treinadores se fazem com uma cultura e um berço portistas. Desenganem-se, pois, aqueles que pensam que Cruyff, Rijkaard, Guardiola e Luis Henrique tiveram sucesso no Barcelona apenas porque sim; foi ao contrário: foi o Barcelona que teve sucesso neles. Há várias formas de ganhar, é certo, tanto com Jesualdo Ferreira, como com Carlos Alberto Silva. Mas é mais fácil e mais intuitivo fazê-lo quando se contrata alguém que conhece a génese do clube, seja ele um Oliveira, um Villas-Boas ou um Sérgio Conceição.
No caso de SC, o caso é ainda mais gritante, visto que SC acabou por ser um dos substitutos do grande capitão João Pinto, tabelando com Capucho na ala direita do ataque portista. SC sabe o que eram as Antas, o seu significado e tem noção daquilo que é preciso fazer dentro de campo – muito mais que os outros! – para que o FC Porto saia vencedor.
O perfil de SC, a sua cara franzida, a sua têmpera e o seu olhar intimidador fazem parte desse património genético azul-e-branco e aproximam-no como nenhum outro da massa associativa. Daí que a média de espectadores de 45 mil pessoas por partida só possa surpreender os incautos ou distraídos.
O futebol é cada vez mais um negócio, é certo. Mas mesmo os negócios não vivem sem as pessoas, que vibram e, em última análise, pagam o negócio. E os portistas precisam como de pão para a boca de referências, de gente sua nos cargos, no fundo de
gente como nós. Treinar todos treinam, treinar com mística, com cultura, com mentalidade, só alguns.
SC é o porta-estandarte da mística portista hoje em dia e seria atinado montar um projecto de futebol para o futuro em torno desta linhagem e desta mentalidade. Só assim o FC Porto pode continuar próximo dos seus adeptos e das suas gentes. E, paradoxalmente, isso significa também estar mais próximo das vitórias e dos troféus.
Rodrigo de Almada Martins