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“É hoje, bolas, é hoje”. (Tem mesmo de ser hoje?!)
Resolvo sair da cama. E logo começa a minha velha amiga, Miss Little Superstition, a melgar-me o juízo e a bater-me no ombro. Em dias de jogos decisivos, é isto... desde que o mecanismo interino faz com que as pálpebras abram os olhos ao mundo. Sempre ao dispor e supremo capricho de Sua Alteza (essa cínica velhaca!). “Começar o dia com o pé direito”. OK. “Ter a certeza que o primeiro pé que toca no chão é mesmo o direito”. Mas era tanto o sono e é ainda tão difícil coordenar os movimentos neste pós-operatório que fica a dúvida: “Será que usei mesmo o pé direito para me levantar quando rebolei graciosamente da cama para fora?” (Nada a fazer. Estás levantada e fica a intenção, era só o que mais faltava regressar à cama e voltar a fazer de novo).
O reflexo no espelho mostra-me –- para além de outras coisas -- que estou de pijama de tartan vermelho e azul e de tão confortável roupão vermelho. “Mudar já de indumentária. Não facilitar. Cor do demo”. OK. (Deu sorte no primeiro jogo contra o Bayern, não mudes, a cor não quer dizer nada. É vermelho, nota. Não encarnado). Não facilito. Não posso. Hoje é o Dia. Vou ao roupeiro e trato disso: T-shirt branca com a Alice no País das Maravilhas* estampada – “Perfeito!” – casaco branco, calça preta. “Impec”. Venham eles. “Não vais pôr a tocar o Hino do Porto para todo o mundo ouvir”. (Da última vez deu azar). “Não vais responder a ataques ou bocas dos lorpas”. (Da última vez deu azar). Fico careca desta treta da superstição e do eterno duelo anjo/diabo instalados nos meus ombros e sempre a mandar bitaites. Deveria apenas mandar tudo isso às malvas e cantar e vestir e fazer o que me desse na real gana. “Mas... e se?” (Está bem, cala-te lá, mas é só hoje. Ouviste?)
A verdade é que estes rituais da Miss já nos levaram a vencer muitos campeonatos e por isso lhe vou dando ouvidos. Sei que tenho o peso do mundo nos meus ombros. Sou sempre eu a resolver [pareço o Liedson]. Quando nada mais nos resta. No bicampeonato do Vítor Pereira, por exemplo, estávamos já nos jogos finais da época, tudo ia mal, e eu não conseguia entender porquê. Até que dou com um pequeno necéssaire vermelho de molas para o cabelo bem visível atrás da porta do quarto de banho. Bem ali no alto. “Era o que mais faltava! É isto! Agora tudo vai mudar!” (LOL, pirou de vez!). Encatrafiei-o num cesto. Nessa noite, a mouraria empata com o Estoril em casa. No jogo seguinte, o Kelvin marca aos 92. Nunca ninguém soube que fui quase tão preponderante e fundamental como o puto-maravilha. Ninguém soube que foi também graças a mim que o Jorge Jesus ajoelhou. Que morreram uns não-sei-quantos mouros por causa do meu pequeno necéssaire vermelho. Não procuro a fama. Quero é que o Porto ganhe. Fá-lo-ia outra vez.
Recordo também todas as aquelas quartas-feira de Champions League em que à hora do jogo me punha a passar a ferro. Estava a fazê-lo numa dada noite e o Porto ganhou. Fórmula mágica: todas aquelas vitórias, todos aqueles milhões. Um estranho ritual ainda mais para quem sempre detestou aquilo. O meu marido olhava para mim abismado. Mas se dava sorte havia que continuar. A engomar. Para trás e para a frente, para os lados e na diagonal... como se não houvesse amanhã, olhos presos na TV. Um dia não ganhámos. E comecei a arrumar a tábua à hora de jogo. Fui uma mártir sem ninguém saber. Depois disso vieram as molas da roupa. Em semanas de jogos grandes nunca usava as molas vermelhas. Se as usasse era só em roupa preta. De luto. As azuis iam juntas, em roupa branca ou de tons alegres. Gloriosas. Vencemos assim, desta forma, muitos títulos e troféus. Nunca ninguém soube. Nunca ninguém viu.
Ainda não o disse a ninguém, mas no dia 14 de Dezembro de 2014, não foram só os jogadores e o Lope os culpados da humilhante derrota frente aos galináceos em pleno Dragão. 3 pontos que se foram, que se escapuliram graças à minha teimosia e desprezo pela Miss Little S. Lembro-me como se fosse hoje: casa já decorada para o Natal, tarde de domingo... assalta-me um pensamento perturbador: o enorme Pai Natal vermelho e branco tipo peluche à entrada. “Tiro-o dali?”, “Não tiro?”, andei naquilo ainda uns bons minutos. “...e a baixota gosta tanto do velhote e eu também, mas hoje não é o Pai Natal, é um gajo vestido de vermelho e branco!”. (Era o que mais faltava, vais ser superior a isso e não vais tirar o badochas e tudo vai correr bem e não precisas dessas cenas). Mantive-o lá. Não pensei mais naquilo. Só depois do jogo. Mea culpa. Nesse dia perdemos o campeonato.
Hoje, antes do jogo, estava tudo em aparente ordem no meu mundo. Roupa, check. Nada vermelho à vista. Check. Fui espreitar várias vezes o Dragão à janela do meu quarto. Faço até lá peregrinações de quilómetros em dias de jogo. Ver se está bonito, sossegadinho, enviar vibes positivas, pedir resultados e a lua. Olhei para a figura do meu anjo da guarda, sorri-lhe, pedi-lhe sorte. Peguei na caixinha com um anjo de prata que me ofereceram recentemente. Afaguei-o e... deixei-o cair! “OMG. E se..., ai! E se dei azar?!” (Era o que mais faltava: ninguém viu, só nós e nada de mal vai acontecer). Foi o que todos vimos.
Um dia decorrido, ainda fico a remoer no que podia ter feito de melhor. Será que com o roupão vermelho, as molas de qualquer cor usadas indiscriminadamente, o nécessaire ainda no alto atrás da porta, as coisas tinham corrido melhor? “Será que…?” (Ou será que não ganhamos porque simplesmente não quisemos? Não pudemos? Não tivemos arte?). Tínhamos obrigatoriamente de ganhar, 90 minutos em que se jogava toda uma época, o trabalho de toda uma temporada, a humilhação e revolta acumuladas por tantas manobras, tantas pornografias. Era comer a relva se fosse necessário e partir para cima da mourama, sem misericórdia. Deixar tudo em campo. O que se viu? Pouco, pouco, muito pouco. A relva ficou intacta. Jogadores cansados, arrastados, sem mística, sem nada. Não sabem o que é ser, jogar, falar, sentir à Porto. Culpa de quem? Do treinador? Muita, sim. Teimoso como uma mula. Da SAD e da sua política de clube como entreposto comercial? Oh, seguramente.
Foi o culminar de uma semana de azares, tristeza, de luto por esperanças mortas e brutalmente enterradas. Na qualidade de adepta, sinto que fiz tudo o que estaria ao meu alcance para motivar o meu Clube nas suas batalhas. Gritei e torci e cantei e sofri. De nada valeu. Tal como de nada valem as minhas absurdas superstições quando os homens não podem, não querem, não sabem mais. Quando os homens encaram um jogo de ganhar ou morrer como um mero serviço pelo qual são pagos e não como uma possível página de ouro para a eternidade de nós... Quando nós, derrotados e vazios na bancada, os vemos a sair do covil entre sorrisos, abraços e camisola do Inimigo ao ombro. Ainda seco.
* Sincera homenagem ao Paulo Fonseca, época 2013/2014.