Colocado um ponto final da temporada de 1984/85, aureolado com o título de campeão nacional, novos desafios abriam-se à equipa portista e ao seu treinador, seguidor fervoroso das pisadas do Mestre Pedroto. Apostado no reforço do plantel que tinha conseguido resgatar o título, depois de 5 anos de míngua, Artur Jorge escolheu cirúrgica e criteriosamente os elementos para fazer parte de um plano maior, o de conquista da Europa.
Do Brasil chegaram Éloi e Juary, da Polónia Mlynarczyc e da Argélia Madjer, paixão confessa do timoneiro azul e branco, depois de ver em acção o magrebino no Mundial 2002.
A nova temporada iniciou-se com um clássico. Porto-Benfica. Uma tarde de Domingo, sufocante, onde a glória e a tragédia se aliaram, saindo de mãos dadas do anfiteatro portista. O Porto venceu, com Gomes novamente apostado em mostrar os predicados que faziam dele uma máquina letal de marcar golos. Eurico, pilar da defesa, personificação do central moderno, saiu gravemente lesionado, aos 20 minutos, depois da disputa de um lance com Nunes. Fractura da perna, que fizeram o central portista começar a perceber o significado da frase de nuestros hermanos, os tais que não acreditam em bruxas, mas que “las hay, hay”. Reza a lenda que, pouco antes de a partida se iniciar, Eurico descobriu no bolso do seu fato de treino, um escorpião de metal, envolvido em papel preso por alfinetes. O amuleto, de pouco significado antes do apito inicial, explicado racionalmente como obra de algum membro do plantel mais supersticioso, ganhou contornos de misticismo depois do lance fatídico.
E assim, depois da vitória na ronda inaugural, o Porto continuou na defesa do título, jogo após jogo. Artur Jorge, no entanto, almejava mais. O fiasco da temporada anterior, eliminado precocemente e com travo a humilhação nas competições europeias, era uma espinha cravada na sua garganta ambiciosa. Também ele partilhava do sonho do timoneiro da nau azul e branca. Queria ver a Europa rendida às camisolas do Dragão.
No entanto, a sorte pareceu madrasta, quando o sorteio da Taça dos Campeões colocou caprichosamente como adversário a equipa mais poderosa da Holanda. Ajax. Como treinador, uma lenda viva, um mago dos relvados agora sentado no banco, com a cartilha do futebol total debaixo do braço. Johan Cruyff. À sua disposição, uma enorme constelação de estrelas. Vandenburg. Rijkaard. Ronald Koeman. Marco Van Basten. Na primeira mão, com as Antas a transbordarem de emoção, o Porto bate inapelavelmente o campeão holandês, com golos de Laureta e Celso. Renascia a esperança num brilharete no Velho Continente. A 2ª mão apenas acentuou esse desejo, mesclado com uma esperança tímida. Os 90 minutos foram um combate entre o porfiado ataque do Ajax e uma teimosa defesa portista, aguentando o nulo no marcador, para desespero de Cruyff.
Soltados os gritos de júbilo, por ter feito o gigante holandês vergar-se à supremacia lusa, o Porto encarou com alguma apreensão o embate posterior. Nada mais, nada menos do que o ex-libris da Catalunha. O Barcelona, espécie de emblema gravado na pele dos habitantes da cidade condal, era um óbvio candidato à vitória final. Apresentava, no seu luxuoso e galáctico plantel, uma estrela maior. Schuster, ariano alto e louro, arrogante no contacto pessoal, mas com uns pés de sonho, era o ídolo de toda uma região. O Porto, cada vez mais experiente nestes contactos europeus, efectuou um jogo intenso, marcante, merecedor de muito mais do que o 2-0 final, resultado enganador. Abespinharam-se os portistas, e com razão, perante o desplante de uma arbitragem caseira, anulando um golo legal a Juary, deixando ficar impune uma grande-penalidade sobre o mesmo jogador.
O resultado, pesado quando do outro lado se encontrava um opositor de renome, não fez esmorecer os comandados de Artur Jorge. As Antas acreditavam. E puxavam pelos seus rapazes. Noutra notável exibição colectiva, os azuis e branco estiveram quase a conseguir o milagre. Juary bisou, colocando a eliminatória empatada. O Barcelona era uma equipa encostada às cordas. Assediada. Perdida em campo. Mas tinha nomes extraordinários, capazes de por si só resolverem uma contenda. Lenda viva na Argentina, Archibald, oriundo das pampas, pequeno mas portador de uma técnica invejável, deu um alento enorme ao Barça, marcando o golo salvador, autêntico balde de água fria num recinto que pressentia um momento histórico. Foi o ponto final na epopeia europeia, claudicando aos pés de um colosso, amparado na 1ª mão por uma deplorável arbitragem, acompanhado na 2ª por uma dose industrial de sorte. Juary, no entanto, ainda acentuou mais a magnífica exibição portista, fazendo o seu hat-trick, à beira do apito final. O Porto despedia-se da Europa, novamente antes de Dezembro, mas desta feita com o coração batendo orgulhosamente no peito, sabendo que ali estava em construção uma equipa forte, capaz dos maiores feitos. A Europa seria nossa, cerca de um ano depois…
Perdido o comboio europeu, o Porto virou as atenções para as competições nacionais. Ponto a ponto, jogo a jogo, com alguns percalços pelo meio, a competição foi avançando, aproximando-se do seu clímax. Numa luta a 3, os grandes portugueses chegaram à penúltima jornada com hipóteses de se sagrarem campeões.
Faltavam 180 minutos para o fim do Campeonato. Na Luz faziam os preparativos para a festa, que se queria de arromba. O convidado para as festividades era o vizinho do lado, humilhado semanas antes para a Taça, vergastado ao peso da vergonha de sucumbir por 5-0. O Porto, 2 pontos atrás, sonhava com uma reviravolta milagrosa. Para isso, teria que vencer em Setúbal, terreno tradicionalmente difícil. O Sporting, transformado pela pressão mediática numa espécie de figurante na entrega do título aos encarnados, remoía vingança em surdina. Se vencesse e beneficiasse de uma derrota portista em terras do Sado, o topo da classificação sofreria uma reviravolta inesperada.
E eu, boca seca pelo nervosismo, acariciando o transístor que me servia de companhia, seguia as incidências, rezando fervorosamente. A primeira explosão de alegria veio, paradoxalmente, do Sul. Na Luz, Manuel Fernandes calava a arrogância marcando o 1º do Sporting. Ao primeiro, seguiu-se o 2º, para incredulidade de um País que acompanhava atentamente os feixes hertzianos, em tempos longínquos onde a televisão não massificara ainda o fenómeno futebolístico.
Faltava apenas o golo portista, para consumação da reviravolta na classificação. E ele veio, numa arrancada fenomenal de Futre, em Setúbal, deambulando perante meia equipa setubalense, naqueles raides infernais que o notabilizaram. O Porto marcava. O Benfica, mesmo reduzindo em casa, sofria uma estrondosa derrota. E, quando os 90 minutos dessa épica jornada terminaram, após um prolongado nervosismo, eram os pupilos de Artur Jorge os primeiros na classificação, apesar de empatados em pontos com os rivais do Sul. 90 minutos que transfiguraram por completo o ânimo dos adeptos. Na Invicta, fazia-se já a festa por antecipação, recebendo apoteoticamente a equipa, regressada do confronto com os sadinos. Vitoriavam-se os jogadores, aplaudiam-se os técnicos, gritava-se a plenos pulmões o amor clubista. Na Capital do Império, os precoces festejos davam agora lugar a manifestações pesarosas de tristeza, chorando a perda de um título que parecia certo.
Mas o campeonato, repleto de emoções, não tinha terminado. E o Covilhã, último classificado, já com a descida ao escalão secundário garantida, não pretendia fazer o papel de “bombo da festa”, na visita às Antas. O Domingo, resplandecente no sol que brilhava, como se este tivesse querido juntar-se à festa, viu o jogo iniciar-se. Tudo se decidiria no Porto. À mesma hora, a míseros quilómetros de distância, o Benfica jogava no Bessa, ouvidos colado aos rádios, procurando a boa nova. A ansiedade, normal num dia assim, soltou-se cedo, nas Antas. 5 minutos e golo do Porto, na marcação de uma grande penalidade. O azul e branco revoluteava nas bancadas. Artur Jorge era aclamado, em uníssono, como o novo Messias. Mas o pior, numa espécie de pesadelo surrealista, acontecia, para incredulidade geral.
Dois golos dos serranos, orientados por Vieira Nunes, cunhado de Artur Jorge, colocaram os adeptos azuis e brancos à beira do desespero. Por momentos pairou no anfiteatro portista a possibilidade de uma situação idêntica à vivida pelo Brasil, derrotado no Mundial realizado em casa, num Maracanã repleto.
O primeiro sinal de alívio veio do Bessa. Os axadrezados marcavam e, nessa correlação de resultados, o título mantinha-se fiel ao Porto. Mas qual o gozo de vencer um campeonato assim, deve ter pensado o herói icónico dos portista? Fernando Gomes assumiu a batuta da revolta, ainda e sempre com o estandarte de adoração a Pedroto bem elevado. Dois golos, num curto espaço de tempo, colocando novamente o vulcão à beira da explosão. Um deles, uma verdadeira obra de arte, arrojada na sua concepção, num movimento magnífico do mítico ponta de lança. Elói, quase no final da partida, materializou o 4-2 final, apoteótico, relançando as Antas para a efusiva loucura, sadia na sua alegria, comovente na irmandade gerada, exuberante porque nascida de um Mundo de dificuldades.
Artur Jorge chegava assim, por mérito próprio, ao panteão dos notáveis, alcançando dois títulos nacionais, marcados com um cunho muito pessoal.
carago!
ResponderEliminarque lembrança!!
eu estive lá! e tb no dia da lesão do Eurico, num dia tórrido de Agosto com povo até pendurado nas torres de iluminação.
até bateu uma saudade!
Excelentes memórias! O melhor ainda estava para vir no ano seguinte!
ResponderEliminarO Artur Jorge viu o grande Madjer no Mundial 82,não no Mundial 2002
Saudações
Como já referi, há tempos atrás, as épocas do A.Jorge, para mim são inesquecíveis.
ResponderEliminarÉ pois, com emoção, que recordo todos esses tempos, que o P.Pereira nos recorda, com a sua escrita previlegiada.
Estive em Setúbal e como o jogo do F.C.Porto, acabou minutos antes do da Luz, imaginem o sofrimento.
Sobre a Taça dos Campeões duas notas: no Porto-Ajax, vi o F.C.Porto levar o maior banho de bola de sempre, num jogo em casa.
A posse de bola foi para aí 80% para os holandeses, mas ganhamos, marcando os golos, praticamente, nas únicas duas vezs que rematamos à baliza.
Sobre o jogo de Barcelona, uma história verídica: a comitiva portista, na manhã do jogo e quando dava aquele passeio de descontração, encontrou o trio de arbitragem a passear acompanhado de três autênticas beldades. Acharam estranho e antes do jogo, colocaram a questão ao delegado da Uefa, tendo este respondido, que eram funcionárias do Barcelona e que estavam a mostrar a cidade aos àrbitros.
Muito eficientes, digo eu, essas funcionárias, atendendo à vergonhosa arbitragem do Belga - o nome é muito esquesito só sei que começava por L - que prejudicou vergonhosamente, o F.C.Porto.
Um abraço
Obrigado por mais esta obra prima q nos concedes.
ResponderEliminarTempos de glória esses, que recordo com uma lágrima no canto do olho.
Na altura era ainda um miúdo e cada golo do Gomes era para mim uma alegria enorme. Era o meu ídolo.
Esse vídeo é fantástico, o do jogo decisivo com o Covilhã.
Parece q foi ontem q ao lado do meu pai o observava nervosíssimo com as dificuldades impostas pelos serranos. E depois a sua alegria, o seu sorriso ao me dizer q o Gomes marcara. A partir desse jogo e acreditem q é mesmo verdade, não mais perdi um jogo do Porto, ao vivo, na tv ou só pela rádio.
E mais uma vez dizer q devorei todas as tuas palvras nesta fantástica crónica. Está divinal. E não, não sou exagerado.
O nosso amor pelo FC Porto depois destes textos sobe exponencialmente.
Velhos tempos em que o FC Porto tinha camisolas à FC Porto e não camisolas à Nike.
ResponderEliminarhurakatai:
ResponderEliminarTu não perdoas:) és terrível!! Qq dia ainda acho q és o MST :)
Eu estive em Setúbal a ver esse jogo!
ResponderEliminarAquelas 3 épocas do Artur Jorge, que culminaram com a conquista da Taça dos Campeões, são inesquecíveis.
Também estive presente na estreia do Madjer, no Restelo, onde ganhámos por 3-2 com uma exibição fantástica do argelino - que na jornada seguinte, se não me engano, marcou os 2 golos da vitória contra o Boavista, no Bessa.
Porra, que saudades!
Tenho todos os resumos do Porto gravados em VHS desde a época de 85/86 e este Porto-Covilhã devo tê-lo visto mais de 150 mil vezes (nada que se compare, no entanto, com a final de Viena...)
«Tenho todos os resumos do Porto gravados em VHS desde a época de 85/86 e este Porto-Covilhã devo tê-lo visto mais de 150 mil vezes (nada que se compare, no entanto, com a final de Viena...)»
ResponderEliminare eu a pensar q era o único tolinho:) afinal não sou o único:)
Eu estive lá
ResponderEliminarNa arquibancada encostado ao ferro - no "U" onde diz FUTEBOL CLUBE DO PORTO.
Lembrança bonita
Pois tb eu recordo com saudade estes tempos...mas fica a curiosidade..sabiam que o Artur Jorge é meu primo em 3º grau...!!!AH pois...
ResponderEliminarAmigo Paulo só tu para nos rebuscares da memória estes feitos...agora em dezembro é costume ja ser-mos campeoes..
já tinha saudades de ums crónica tua por este espaço teu...
É bom recordar estes tempos glorisos que pude ver ao vivo ou através do relato pela rádio como o tal Setubal-Porto com o golodo Futre e a derrota dos benfas.
ResponderEliminarTambém eu tenho umas quantas cassetes com os resumos dos jogos, eh, eh...
Foi (É) bonita a festa pá!
ResponderEliminar-Naqueles tempos estava lá de pedra e cal. Mesmo quando chovia como nunca e a água entrava pelo pescoço e criava piscinas nos sapatos...Ninguém arredava, era guarda-chuva ao lado de guarda-chuva, parecíamos uma imensa legião romana -escudo sobre escudo- tremendamente unida e solidária e a chuva a entrar por todos os lados...Quando ela finalmente acabava, ficava no ar o fumo oriundo do calor dos corpos, um cheiro indescritível a suor, a tabaco e a esperança!...
Eu só vi o jogo com o Ajax para a super taça Europeia ganhamos com golo do António Sousa. Acho que ainda tenho o bilhete .Salvo erro foi quando se fizeram as bombas da esso.
ResponderEliminarAbraço
Que saudades deste estadio ...
ResponderEliminarViva !
ResponderEliminarMesmo muito bom !
Pena que esta segunda parte tivesse ficado tão longe da primeira.
Espero com ânsia a terceira parte.
Viena : A Consagração !
Viena : A Afirmação !
Viena : O Azulão !
Viena : A Revolução !
E Viva o Porto !
Paulo,
ResponderEliminarGrande texto. A tua forma erudita de escrever é realmente portentosa. Quanto ao conteúdo em si, é bom fazer esta viagem a glórias passadas e ver imagens de jogos que, apesar de já ter ouvido falar, nunca tinha visto.
Também sou daqueles maluquinhos que guarda tudo e mais alguma coisa sobre futebol e, em particular, do FC Porto. Desde VHS's, DVD's, revistas, jornais, etc. Passo a vida a gravar jogos para mais tarde poder recordar e gosto especialmente de ver os jogos que dão na RTP Memória. Foi através desse canal que consegui ficar com uma gravação maravilhosa em DVD da final de Viena em 87, que não tinha. Amanhã, por exemplo, teremos um U.Madeira-FC Porto de 94.
lEMBRO-ME DESSE JOGO COM O COVILHA, NÃO FUI VER, MAS O MEU PAI FOI, ATÉ AO GOLO DO EMPATE FOI NERVISISMO DO CARAÇAS, VI MUITA GENTE A SAIR DO ESTADIO DAS ANTAS DE MACA, NÃO AGUENTARAM A PRESSÃO, MAS NO FIM A FESTA FOI AZUL.
ResponderEliminarGRANDE FESTA QUE ERA NESSE TEMPO, NAQUELE TEMPO JÁ EU FESTEJAVA DE BANDEIRA NO AR.
Saudades mesmo :)
ResponderEliminarEstádio nenhum se compara ao nosso das Antas, não fazem a mais pequena ideia da minha tristeza aquando da sua demolição... até à bem pouco tempo me custava ir ao Dragão e olhar para aquele buraco onde já vivemos tantas e tantas alegrias.
Excelente memória Paullo :)
Era eu ainda um pequenito regila, fruto dos meus 12 anitos de petiz, agarrado às redes da bancada Norte na zona que se não me falha agora a memória, era descrita como «peão», bem junto ao relvado, e vibrando muito, muito mesmo, com os feitos do meus heróis de azul-e-branco vestidos.
ResponderEliminarPaulo Pereira, parabéns por mais um daqueles teus momentos de magia pura que nos vais habituando ao longo deste teu percurso neste espaço.
Venham mais, é caso para provocar...
ps - que saudades, que saudades do Mitico Estádio das Antas, local de tantas glórias!
Grande texto. Lembro-me muito bem desse dia, em que ganhamos ao Covilhã. :))
ResponderEliminarsó uma pequena correcção: o archibald do barça era (é) escocês e não argentino ;)
Fui a Setubal com o meu pai,avô e vários amigos, e contra o Covilhã fui com o Duarte Gomes,irmão do bi-bota para a beira dos Dragões Azuis
ResponderEliminarcom uma enorme bandeira do Porto que ficou toda aos buraquinhos devido ás tochas que se acenderam naquele local.Fim-do-Mundo as Antas!!! Que saudades ... que emoção !
Mas,os tempos são outros .........
Gostei dos detalhes do sr.meirelesportuense...era mesmo!!!
Parabens e Abraço