13 setembro, 2007

A sequela

Hoje acordei armado em argumentista. E a culpa é do Blue Boy e do seu contra-dossier vermelho. Matutava na crónica para o blog, quando pensei: “ e se fizesse um argumento para um filme?”. Sim, e se fizesse? Um esboço de um êxito de bilheteira. Carago, se o João Botelho, que nada fez de relevante pela cultura deste País, consegue ser um realizador cinematográfico, cozinhando com a sua Leonor o filme “Corrupção”, também eu sou capaz de arranjar umas ideias.

Não custa muito deixarmo-nos levar pela imaginação. A acção decorre no final da década de 50. Mais precisamente num dia específico.


22 de Março de 1959.

Um calor extemporâneo aumenta a já de si elevada ansiedade. Um País pulsa naquela tarde de Domingo. A decisão do campeão nacional será conhecida, pouco depois das 17 horas. Até lá, um longo vazio que é necessário preencher com as actividades corriqueiras. As brincadeiras com os filhos, em parques verdejantes, vendo as tropelias dos miúdos, enquanto sub-repticiamente se olha para o relógio. “Porra, será que isto está avariado?”, exclamam os nervosos adeptos do pontapé na bola. A impaciência na missa dominical, ouvindo o sermão do clérigo e tentando disfarçar o ar aborrecido. Os pingos de suor que escorrem lentamente pelas costas abaixo. O estômago revoltado, as palmas das mãos transpiradas, aquele nó na garganta. O olhar absorto, prenúncio do tumulto interior que dilacera as almas. A hora aproxima-se. Os ouvidos de milhões estão colados aos rádios. Em casa, nos cafés apinhados, à sombra de alguma árvore, um País inteiro, parado, expectante. A bola começa a rolar. Seguem-se dois jogos em especial. Em Torres Vedras, o Porto joga com a vantagem de possuir mais quatro golos que o Benfica. À mesma hora, os encarnados recebem a CUF. Sabem que têm que golear para vencerem o título.

Estão calmos. Foi-lhes prometida uma ajuda extra. Os jogos começam. As peripécias também. Os ponteiros avançam, inclementes.

Inocêncio Calabote está nervoso. Aliás, mais nervoso do que no início. Aquilo que parecia um trabalhinho fácil ameaça tornar-se num bico-de-obra. Lá longe, aqueles parolos do Norte fazem pela vida, lutando bravamente. Não será difícil de imaginar o que lhe vai pela mente, com o sol a escaldar a cabeça a descoberto: “Ca**l*o, será que estes c*n*s não marcam uns golos? Já dei 5 minutos a mais na primeira parte e estou a ver que nesta segunda metade nunca mais saímos daqui!”, pensa, sentindo a testa perlada de pequenas gotículas de suor.“Bem, se isto continua assim, mandam-me pró Tarrafal…e ainda tenho que devolver a massa”, rumina, preocupado com a inoperância ofensiva dos encarnados. Os olhos, fugidios, miram temerosos umas sinistras figuras vestidas de preto, ali, bem junto do portão de acesso aos balneários. “Cabr**s da PIDE. Ainda vão pensar que é por minha culpa que estamos em desvantagem…”. Desperta dos seus devaneios com uma assobiadela monstra. Um jogador do Benfica rebola-se no relvado, agarrado a uma perna, fazendo um esgar de dor. Corre, sentindo a boca seca e o coração palpitante. “F*d*-**, tenho que deixar de fumar…”, resfolega, numa passada pesada, aproximando-se da cena do incidente. Nas bancadas, a multidão desespera, ululante, sentindo que o título lhe escapa por entre as mãos. “Tenho que fazer alguma coisa, senão ainda me lincham aqui mesmo”, murmura Calabote, cada vez mais assustado com o rumo do encontro. Olha para o seu relógio, novinho em folha, reluzindo com os raios de luz que embatem na braçadeira de ouro. Sente-se extasiado sempre que o admira. Uma prenda de um generoso presidente de um clube lisboeta. Depois, sente um choque tremendo. Os ponteiros não enganam. Já passam 6 minutos do tempo regulamentar. “Ai a minha vida”, pragueja Calabote, em voz alta, despertando a atenção de jogadores de ambas as equipas, que se entreolham, surpresos com o ar furibundo do juiz da partida. “Ou vai ou racha. Vou marcar penalty”. Apita agressivamente, pega na bola, ignora os lamentos do jogador caído e avança de forma destemida para a marca de grande penalidade. Sente alguém correr junto a ele, ofegante. Pelo canto do olho, vislumbra as feições de Eusébio. “Ó Mister, qué qué se passa?”, pergunta preocupado o moçambicano, no seu típico sotaque africano. “Marca lá a falta para nós continuar o jogo”, suplica o pantera negra. Calabote, sem diminuir a passada, vira-se para Eusébio, num tom conspirativo. “Não te preocupes, pá. Claro que marco. Vais ter um penaltezito agora mesmo. Vê lá se não falhas”, confessou o anafado árbitro, não disfarçando um riso de satisfação. Eusébio, que não estava a perceber nada daquilo, julga que o outro reinava com ele. “Ó Mister, nós ter que marcar mais golos…não brinca com a gente não…o nosso jogador caiu sozinho…”, mas as palavras foram esmorecendo, à medida que se apercebe que o árbitro ia mesmo concretizar a promessa. Ainda abriu a boca, procurando alertar o juiz para o equívoco, mas sente um cotovelo a enterrar-se com força no seu estômago. “Não sejas parvo, pá”, grita-lhe o capitão da equipa encarnada.

Nas bancadas, a surpresa rapidamente deu lugar ao delírio. A oportunidade de marcar mais um golo estava ali, à mercê. A multidão soltava vivas, com os chapéus a serem atirados ao ar. Sentindo um frémito de emoção, o sr. Vieira nem viu que o seu pequeno filho, o Luís Filipe, se esgueirava por entre os corpos que se apertam nas bancadas compactamente. Nem ele, nem os incautos espectadores, aliviados das carteiras que trazem negligentemente nos bolsos traseiros. Luís Filipe, conhecido pelos colegas de escola como o Orelhas, exulta de alegria. Não pela vitória da equipa do seu coração, mas pela colecção de carteiras conseguidas em tão curto espaço de tempo. “Tótos, são mesmo totós”, diz para si mesmo, enquanto rouba mais uma. No mais alto degrau das bancadas de cimento, com toda a gente a perscrutar o campo, começa a analisar o conteúdo da colheita. Satisfeito, faz contas de cabeça. “Porra…tanta massa junta…nem acredito”, e ri, esfregando as mãos de contentamento. “Vou poder convidar a Maria José para ir ao cinema e depois lanchar naquela pastelaria cara”, magica ele, enquanto os seus pensamentos se detêm na visão do rosto da rapariga dos seus sonhos, que estuda num colégio católico, e usa os olhos sempre muito pintados. “A Morgadinha vai ser minha…”, sonha lascivamente. Só há um problema. “C***lh*, se não fosse a melga do filho dos Sanches”, e esmurra a parede, só com a simples menção do nome da família de fiscalistas. O Saldanha, repetente no Colégio onde anda a Maria José, é um dos pretendentes da rapariga. Luís Filipe inveja-lhe os modos. A apresentação. As roupas caras. Olha para si, vestido de forma quase andrajosa. “Me**a”, pragueja, “se o negócio dos camiões do meu pai desse alguma coisa”, lamuria-se. Mas depois tem uma ideia. Brilhante. Está tão imerso nos seus pensamentos, que nem dá conta dos gritos de desânimo que alastram pelo Estádio. O Porto tinha marcado, lá longe, em Torres Vedras.

Mas Luís Filipe não se importa. Lembra-se de um fedelho, adoptado por um casal de homossexuais belgas, que anda lá na escola. O Veiguinha, como lhe chamam, apregoa o seu portismo aos sete ventos. Luís Filipe, mal o ouviu dizer isso, no 1º ano, espetou-lhe uma sova. Pior a emenda do que o soneto. No dia seguinte, no recreio, enquanto se apoderava dos berlindes dos miúdos mais desfavorecidos, sentiu que lhe tocavam no ombro. Virou-se, com o seu ar de fanfarrão e viu quatro calmeirões. “Olá, eu sou o Fernando, o primo do Veiguinha”, disse um deles, antes de lhe desferir um murro que o fez cambalear. Do resto, já esquecido pelo orgulhoso Orelhas, ainda perduram umas quantas nódoas negras. Mas isso agora não importa. Ele ia usar o primo Fernando e aliar-se ao Veiguinha. “Ambos os dois seremos imbatíveis”, pensa em voz alta. E iria ter a sua Maria José. A sua atenção é desviada pela correria de um homem que sai do estádio, desenfreadamente. “Olha, aquele não é o árbitro?”, interroga-se, enquanto vê surpreso uns homens vestidos de negro, de expressões patibulares, que perseguem o juiz da partida…

Nos dias de hoje…

O que é feito das personagens, passadas umas décadas?

Luís Filipe Vieira – Resolvidos os seus problemas com a lei, resultante do roubo de um camião, o menino Luís Filipe é agora, aparentemente, um homem respeitável. Tornou-se presidente de um clube de um futebol, prometendo, todos os anos, em tom laudatório, títulos e honrarias que, no final, nunca consegue obter. Tenta, por todos os meios, ser o melhor. Coloca amigos em postos-chave, seja na Federação, Liga ou Conselho de Arbitragem, mostrando que aprendeu o modus operandi de antigamente. Não se casou com a sua paixão de infância, a Maria José. No entanto, mantêm com ela uma relação próxima de amizade. Deu emprego nas suas empresas ao menino Saldanha, que de rival amoroso passou a conselheiro nos negócios.

José Veiga – Emigrou, depois de adoptado pelo casal de homossexuais belgas. No Luxemburgo fundou uma casa do FC Porto. Começou por lá a sua vida no crime da alta-finança. Licenciou-se em desfalques a Bancos e manutenção de off-shores em paraísos fiscais. Tirou um mestrado, com a tese “como ludibriar o Fisco e não ser preso”. De regresso à Pátria, uniu-se ao Orelhas, tornando-se numa espécie de guru futebolístico. As suas contratações são sempre monumentais flops. Frequenta aulas nocturnas de português, numa tentativa vã de conseguir articular uma frase que faça sentido. A professora, Edite Estrela, já desabafou que é um caso perdido.

O primo Fernando – Refinou-se, vivendo sempre na sombra do Veiguinha. Participou em algumas tramóias com ele. Viu a sua aparência vestir uma ténue camada de sociabilidade. Agora, mais sereno, esbofeteia cidadãos em aeroportos, esperando por eles no terminal de chegadas. Mantêm um caso com a esposa de um cineasta benfiquista, uma tipa que escreve uma larachas nos jornais.

A menina Leonor – Não aparecendo no filme, na década de 5o, a Leonor Pinhão surge agora, mercê do caso extraconjugal que tem com o Primo Fernando. Mulher amarga, destila fel por cada poro, tento o Porto como inimigo figadal. Balbucia constantemente, revivendo estórias do passado, contadas pelo seu falecido pai, em que o Benfica ganhava sempre. Anseia pelo regresso a esses tempos. Frígida, procura o prazer sexual que não obtêm com o seu marido, nas mãos calosas do primo Fernando. Entretando, vai completando livros, alterando-lhes o conteúdo, tentando igualar a escrita de um dos seus ódios de estimação, Miguel Sousa Tavares. Inveja-lhe o sucesso, a capacidade de raciocínio, a sagacidade. Comprou todos os exemplares que pode de "Equador", livro que consome dia após dia, imaginando que foi obra da sua autoria.

Realidade ou ficção?

Isso é o leitor que escolhe. O que posso dizer, em abono da verdade, é que o Porto venceu o Campeonato em 1958/59. Contra tudo e contra todos. Tal como agora. Na altura, a CUF perdeu na Luz, por pesados 7-1. 3 dos golos foram de grande penalidade. 3 jogadores da CUF foram expulsos. Existe uma contracorrente, em blogs vermelhos, que proclama a verdade quanto a este caso. As provas apresentadas: as notícias dos jornais da época. Aconselho-vos, desde já, a evitarem a leitura de patéticas justificações. O jornal de então é o pasquim da actualidade, a “Bola” e a crónica do jogo é assinada por um dos mais acérrimos inimigos – e o termo é apropriado – do nosso clube, o MERDAS do Alfredo Farinha. Como vêem, são umas provas “concludentes”, não são?

ps - Também constitui caso único, julgo, o árbitro dessa famigerada partida ter sido excomungado do futebol, corrido com o rótulo de corrupto. Caçou-se um, mas o corruptor, o agente que desencadeou a corrupção, ficou na sombra, longe dos holofotes de uma comunicação social que, já na época, era subserviente até ao nojo. Por isso, e a frase é minha, não aceito lições de moral de quem quer que seja, muito menos de benfiquistas, cuja glória foi construída da forma que se sabe.

pps - Só procurei demonstrar que não é preciso ser muito inteligente, nem pseudo-jornalista, para alinhavar um argumento fantasioso. Só me faltam mesmo os meios financeiros necessários para tornar este artigo numa longa-metragem. E depois, o que acharia o medíocre realizador Botelho e a sua amada Pinhão de se verem assim, retratados na tela?

ppps - podem continuar a descer, porque ainda há mais para ler...

7 comentários:

  1. Bem Paulo, isto está fantástico. Estou rendido à tua obra. Parabéns. Posso-me oferecer para ser uma personagem do teu filme? O primo Fernando, para ter o prazer de dar um murro ao Vieira... Pensando melhor,não quero, tenho q ter um caso com a Leonor Pinhão n é? Ela parece um homem...

    Duas notas finais:

    a) O meu pai já me falou desse jogo em 1959 e diz q nunca mais esqueceu aqueles longos minutos de rádio encostado ao ouvido a esperar q os mais de 10 minutos de desconto do jogo da luz terminassem...E lembra ele q os nossos heróis estavam deitados no campo de torres vedras tb de rádio ao ouvido... E falam estes cabr*es do apito dourado...

    b) espero agora por outra obra com novas personagens, até bem mais actuais, por ex: Proença, Elmano, Lucílio Baptista, Hélio sAntos, João Ferreira...


    Abraço e boas férias.

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  2. Estilhaço:
    afinal parece q sp vou ver o FCP-Marítimo. Vão-me emprestar um cartão com lugar anual. Um pouco mais cedo passo pela "Vodafone":)

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  3. Olá a todos,

    Efectivamente, não é muito dificil escolher um tema para a sequela do filme, k até já tem data de estreia: dia 1 de Novembro, dia em k começa o achincalhamento na praça pública, numa nova e inovadora maneira de fazer justiça, ao bom estilo das milícias. Reafirmo o k disse: pena não ter dinheiro, pois garanto k de uma só vez inundava o mercado de filmes sobre esses cabrões todos, cheios de esqueletos nos armários.
    Estilhaço, colocaste um dado importante em cima da mesa: logo após Calabote, e o título portista, vencido milagrosamente, foram 19 anos de secura. Mera coincidência ou castigo para quem se atreveu a enfrentar o sistema? Parece-me clara a resposta...

    Lucho, obrigado pelos votos de boas férias. Sábado lá irei para o sul do País, mas nem começam muito bem. A Filipa resolveu adoecer antes:(

    ps: Numa prova inequívoca de k a Leonor Pinhão passa o dia a sonhar com o Porto, lá dispara ela, na sua costumeira crónica semanal, a estranheza pela poupança de Quaresma na Selecção. Inacreditável ao k chega a mulher, achando k o escarroso brasileiro pouparia propositadamente o ciganito por especial favor ao FCP. Tá bem tá...

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  4. já existe um concorrente para esse filme. Chama-se Penetração podem ver em http://www.tripasvegetarianas.blogspot.com/

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  5. Paulo... Paulo!
    Com esta obra de arte não compreendo como a D. Quixote ainda não se ofereceu para publicar, ao menos o livro!
    Já sei. Falta-te um atributo que hoje em dia é indispensável. Não és alternadeira! Nada feito amigo.

    Mais a sério. O relato cruza a verdade com a imaginação. Parabéns por esta obra de arte.

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  6. O post está tão elucidativo e fantástico que não há muito mais a acrescentar... a não ser referir, mais uma vez, que é uma grande honra ser membro permanente de um blog como este!

    Saudações Azuis

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  7. Belo texto, não acrescento mais nada, os 19 anos que estivemos sem ganhar nada nem foi assim tanto tempo para um clube que não tinha direito a nada, nem ás sobras dos reis de Lisboa era um aautentica palhaçada.


    Saudações Azuis

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