03 janeiro, 2015

FOI HÁ QUASE TRINTA ANOS.

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No artigo anterior (FC PORTO, O REI DO NORTE - AQUI) abordei o histórico sprint que foi o campeonato de 85/86, com as duas últimas jornadas do nosso contentamento: a da vitória com golo solitário de Futre em Setúbal e o triundo caseiro diante do Sporting da Covilhã.

Hoje vou divagar sobre o título de 84/85 e da alegria, também ela desmedida, ocorrida nas Antas. Mais uma vez recorrendo ao inevitável Filhos do Dragão, do grande Paulo Bizarro (que tem feito infelizmente mais pelo arquivo histórico do FC Porto do que o próprio clube), venho apresentar não a versão factual da coisa, que já está documentada no vídeo, mas a visão pessoal e subjectiva desse título. Tentar chegar onde as imagens não chegam e descortinar, indagar, supor o que foi a alegria desse campeonato e o que significou para os portistas.

1985 (o ano em que nasci, já agora) não distava muito de 1978, o ano em que o FC Porto acabou com o longo jejum de 19 anos sem erguer o ceptro de campeão nacional. Depois do bi-campeonato festejado em 79, por obra e graça do Zé do Boné, passaram-se então mais 5 temporadas em que, como se costuma dizer na gíria, não vimos a “mãe do padeiro”. Podia dizer-se com propriedade e sem exageros, nessa altura, aquilo que ouvia as (poucas) senhoras que frequentavam as Antas nos anos 90 dizer quando a bola não entrava: “portista sofre”. Era assim, de facto. A bola não entrava, passava-se a Ponte D. Luís e já se estava a perder, as arbitragens eram um “roubo d’igreja” e os campeonatos passavam ao lado das vitrinas azuis e brancas.

Como já se referiu várias vezes neste blog e um pouco por toda a bluegosfera, José Maria Pedroto veio alterar esse paradigma. A camioneta a passar a ponte (nome dado a esta minha rúbrica no BibóPorto, aliás, em homenagem ao Mestre), com ele, deixou de ser um problema. O FC Porto passou a jogar para ganhar, com alma, raça e empenho, contra tudo e contra todos, fosse em que estádio fosse, fossem em que condições fossem. Será essa a famosa marca da mística nortenha. Se João Moutinho diz na sua mais recente entrevista que jogar no FC Porto é especial e que existe uma mentalidade diferente no nosso clube, isso deve-se em grande medida ao esforço de dois homens que inverteram o tabuleiro do futebol português: Jorge Nuno Pinto da Costa e José Maria Pedroto.

Mas voltemos a 1985 e a essa jornada 27. Eu estava para nascer daí a 5 meses e já devo ter sentido, na barriga da minha Mãe, a euforia deste título. O jogo tinha tudo para correr bem. O Sporting havia empatado em Vila do Conde e auto-estrada para o título desenhava-se nítida e imparável.

Até que o FC Porto entra em campo, sozinho, bem depois do Belenenses, saindo a correr do túnel que nesse tempo se enterrava defronte da superior sul. Esse é, a propósito, ainda hoje, um dos meus momentos favoritos quando vou ao futebol. De pé, aplaudo a entrada da equipa, numa espécie de ritual que só quem tem muitos anos de futebol e de FC Porto percebe. O nosso Porto a entrar em campo, a corneta a tocar, buzinas a disparar, bandeiras agitadas, cachecóis esticados, o hino a tocar, outrora os confettis e o papel higiénico lançados para o relvado. É difícil dizer o que se sente, mas é qualquer coisa do domínio do imaterial e do etéreo.

O jogo começa de feição e cedo se percebe que o título não fugiria da Invicta. O grande Zé Beto pouco trabalho tinha e vivia-se o tempo das arrancadas endiabradas de Paulo Futre, serpenteando por entre adversários, sempre com a bola à frente do seu pé esquerdo, sempre mais veloz e em maior rotação que os opositores. Mas é João Pinto que, ao contrário dos defeitos que ainda hoje lhe apontam, tira um cruzamento de pé esquerdo com conta, peso e medida para a cabeça de Gomes, que faz o 1x0 e sela o carimbo do título.

A partir daí, aquele bloco coeso e mandão que era o Porto dos anos 80, não mais deixaria fugir a vitória. Gomes marca dois penalties irrepreensíveis (ai Jackson, Jackson…), secos, rasteiros e colocados. Jaime Magalhães, pelo meio, ludibria o guarda-redes e, simulando rematar com o tradicional pé direito, usa o esquerdo para colocar a bola dentro da baliza em grande estilo. Quer isto dizer que, aos 85 minutos de jogo, o Porto vencia por 4x0 e tinha o título mais que assegurado.

O resto, bem, o resto é história e é preciso ver o vídeo para se crer que de facto as coisas eram assim. Quando o Belenenses marca o tento de honra, é possível ver a quantidade de pessoas que corriam pela pista de tartan fora, extravasando a sua alegria, dando a volta ao relvado festejando o título como se de uma Olimpíada se tratasse, empunhando bandeiras e cachecóis. Os jogadores continuavam a jogar, indiferentes ao que se passava à sua volta. Naquele tempo aquilo era normalíssimo e não chocava ninguém.

Mas o que se vê depois nas imagens não deixa ninguém indiferente. Os últimos minutos são jogados com o magnífico relvado das Antas transformado num ringue de freguesia, com uma multidão cuidadosamente colocada atrás das linhas de cal que delimitam o relvado, aguardando o apito final de Carlos Valente. Só que a três minutos do fim, João Pinto, no seu jeito característico, decide ir à linha como se se tratasse do primeiro minuto de jogo e faz um passe atrasado para Jaime Magalhães, que coloca na área onde Gomes, no meio da confusão, ajeita para Futre desferir um remate indefensável que só pára no fundo das redes do Belém. A falange de adeptos que se acumulava junto às linhas laterais e de fundo não resiste, a emoção é demasiada, a alegria é imensa, incontrolável. Era o regresso do FC Porto aos títulos passados 5 anos e a geração que ali se vislumbrava (Zé Beto, João Pinto, Inácio, Lima Pereira, Jaime Magalhães, Futre, Gomes, por exemplo) dava fundadas esperanças aos adeptos portistas. Era natural e inevitável a esperança de tempos vitoriosos futuros (não se enganaram, de facto, essa geração iria acabar por conquistar a Europa e o Mundo). A invasão de campo, antes do apito final, consumava-se.

Foi preciso calma e muita paciência para voltar a convencer toda a multidão que o jogo tinha que se jogar até ao fim. Perante os aplausos dos cativos ao reatar do jogo (sempre foram historicamente mais contidos que a malta da superior), os jogadores lá aceitaram cumprir os últimos 3 minutos de jogo, trocando a bola para a frente e para trás, à espera do apito final. Carlos Valente percebeu a situação e encurtou o tempo de jogo, apercebendo-se de que era impossível continuar a suster a turba que se acumulava sedenta de camisolas e calções dos seus ídolos.

Quando o árbitro, por fim, recolhe a bola é a loucura verdadeira e genuína. E nós, portistas agora habituados ao Dragão e a toda aquela segurança desmedida e exagerada, feita de polícias e de stewards, só podemos imaginar por exemplo o que teria sido o momento Kelvin se este tivesse acontecido nos anos 80. Assim, resumiu-se a dois ou três invasores, prontamente agarrados pelos polícias de plantão, como se estivessem a pisar solo sagrado.

O mundo mudou. Portugal mudou. O nosso futebol mudou. O FC Porto mudou. A festa que se seguiu depois do jogo de 1985 é disso vivo exemplo. Peço aos leitores que vejam o vídeo até ao fim, pois é disso merecedor. Adeptos dentro do balneário do clube, misturados com os atletas, dirigentes a festejar no meio dos jogadores, os repórteres a captar tudo sem restrições, banhos de água fria e de champagne, a corneta mítica, Artur Jorge a relembrar Pedroto, Futre entrevistado enquanto fazia a barba e, em som de fundo, a Marcha do FC Porto (hoje definitivamente arrumada para canto) entoada pela grande Maria Amélia Canossa.

Depois disto, o “progresso” tratou de acabar com estas coisas deliciosas. Redes colocaram-se à volta dos relvados numa primeira fase. Depois fizeram-se fossos. Depois vieram os seguranças privados, as cadeiras obrigatórias para nos obrigarem a ver o futebol sentados. Proibiram-se as bandeiras, as cornetas, o papel higiénico e as bombinhas de fumo. Os jogadores passaram a ser uma espécie de estrelas de cinema, inacessíveis, condutores de automóveis de vidros fumados, a treinar em complexos desportivos transformados em quartéis-generais megalómanos, fechados a todos os intrusos. Os jornalistas são obrigados a manterem-se à distância e a informar previamente quais as perguntas que vão colocar. Os jogadores hoje pouco falam, perderam a alma e são robots submetidos à vontade dos empresários.

Isto parece que não foi há muito tempo, claro. Mas foi. Por muito que me custe a aceitar, para o ano, cumprem-se 30 anos deste jogo. Os meus trinta anos. O FC Porto que eu conheci ainda foi este. É difícil hoje em dia vislumbrar onde pára este Porto. Muito difícil. Mas se olharmos com o coração e não com os olhos ainda o veremos, em certos traços esbotados, em determinadas reacções, em indecifráveis festejos, em pequenos gestos e momentos. É imperioso não deixar morrer esse Porto.

NOTA: Vídeo do jogo AQUI (gentilmente cedidos pelo Canal Youtube - Filhos do Dragão, de Paulo Bizarro)

Rodrigo de Almada Martins

5 comentários:

  1. Amigos Portistas podiam partilhar e publicar esta reportagem do Azul & Branco, sobre os Portistas de Aljustrel:
    http://portocanal.sapo.pt/um_video/H3UOYKgp8EQBcNZRZNL1

    Muito obrigado.

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  2. Muito grato pelas recordações.Exemplar crónica.Concordo inteiramente com o que diz do Porto de há 30 anos.Hoje somos diferentes....mas SOMOS PORTO.Não é fácil escrever sobre futebol da maneira como o faz.Parabéns.Já vai sendo hábito lê lo com prazer.Muito obrigado

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  3. Momentos inolvidáveis.Arrepios.Lágrima no canto do olho.Essência dragoniana.Portismo puro.
    Dd G10

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  4. Também fiquei com a lágrima - Gorda - alojada no canto do olho. Vivi isso em pleno Estádio. Hoje revivi. Obrigada pelo texto.

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  5. Obrigada por esta crónica.Reviver o passado com lagrima no canto do olho.

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