05 dezembro, 2016

“CONFORTAVELMENTE ENTORPECIDO” *


“I turned to look but it was gone,
I cannot put my finger on it now,
The child is grown,
The dream is gone.
And I... have become
comfortably numb.”
Largos dias tem este livro. Largos dias tive para o ler, seguramente vários múltiplos de 100, mas apenas recentemente o fiz, até porque apenas há alguns meses cedi ao ímpeto de o comprar e em super-irrecusável promoção. Não deixa de ser a Mãe de todas as Ironias fazê-lo só agora, deixá-lo só para agora, lê-lo só agora. Agora que o clube por ele lenta e dedicada e incansavelmente erguido e afirmado definha, agora que a glória é apenas uma cada vez mais distante memória, agora que as lentes douradas com que víamos o mundo foram substituídas por umas bem mais pardacentas (tristes, tristes, desoladoras que são!), agora que o seu brilho e estatuto de lenda ou semi-lenda dão tristemente lugar à crítica, ao quase insulto, ao completo escárnio e à mais total descrença, num hino puro à monumental e fatídica injustiça dos Homens, incrível capricho dos deuses.

Com a promessa de terem sido escritas pelo punho único e sempre mordaz do nosso Presidente, as páginas autobiográficas deste livro bonitito, esteticamente apelativo, não reservariam surpresas até porque conhecidos eram os desfechos, as histórias, os factos, as pessoas, não acreditando pois -- quando embarquei na aventura -- em grandes, surpreendentes e sumarentas revelações. Mas viradas as 252 páginas que se lêem muito facilmente, paramos para pensar. Uns 37 segundos mais 14 nanossegundos de silêncio e... vemos já não somos a mesma pessoa. Eu, pelo menos, saí diferente da experiência. Mais pensativa. “Será ele, Jorge Nuno – hoje -- a mesma pessoa? A pessoa que entrou no clube em 1958? A pessoa que permanece no clube neste 2016?”


Até que ponto tudo o que ele escreve do fundo e confins da SUA memória, da sua verdade e frontalidade é efectivamente real? Até que ponto tudo em que acreditávamos como pedras basilares da nossa filosofia enquanto clube é autêntico e não retorcido, distorcido, embelezado? A dúvida instala-se e já faz sombra, mais ainda agora nos dias curtos deste quase Inverno. A desconfiança brotou e começa a infiltrar-se, de mansinho em mim. Terá sido este livro (aliado à presente e pornográfica realidade) a mola para desmistificar e desconstruir um Homem que sempre adorei e admirei e tive como referência máxima de bravura, revolta, rebelião, insurgência, idealismo e amor puro e desinteressado a uma causa que por mero acaso e feliz coincidência era a minha? Ah, o despeito, a mágoa… que tudo transformam e moldam! A perfídia. Entre outros factos “oferecidos” pelo cérebro vivo e vivaço do Presidente e bem patentes nas páginas lidas, retive dois que julgo moldam como nenhum outro a sua personalidade pública: 1. A total deferência, a graxa repetitiva e a vassalagem para com alguns “peões” importantinhos que o apoiaram a dado momento de dificuldade, algo que NUNCA esquece (v. acontecimentos desta semana). 2. As “mariquices” e as renitências e as reservas que sempre mostrou ter em aceitar os mais diferentes cargos e estatutos ao longo da sua carreira desportiva no nosso clube ou fora dele, desde os tempos de vogal, chefe de secção, a director do departamento de futebol até em 1982 se consumar no Presidente que todos conhecemos, de que todos nos orgulhamos.

Como se explica tanta relutância em entrar, em permanecer, quando praticamente todos queriam que entrasse e fosse ficando, e tanta obstinação hoje em sair, quando tantos pedem que renuncie? Como se explica o silêncio autista de hoje face ao discurso apaixonado, incómodo e inflamado de outrora? As contradições do livro em colisão com a realidade que hoje confrontamos chega a ser chocante.

“A nossa vida é tão curta, que não podemos dar-nos ao luxo de ser apenas espectadores passivos em relação aos factos, aos acontecimentos que nos emocionam. Há ocasiões únicas em que, ou somos determinados e tentamos dar o nosso contributo para a glória daquilo em que acreditamos, ou desistimos, e optamos por ser apenas mais um número anónimo [….]”.

“Aquela imagem do choro dos nossos emigrantes na Alemanha, tristes com a derrota de uma equipa portuguesa – no caso, o FC Porto – nunca mais me abandonou, até por perceber como na circunstância em que se encontram aqueles homens e mulheres, é para eles de uma importância inimaginável, no dia seguinte poderem olhar os outros de frente, orgulhosos pelo triunfo dos seus. Essa consciência obriga-me, sempre que nos deslocamos ao estrangeiro, a pedir a todos um empenho e um esforço suplementares… [….]”.

“(…) sou convidado a ir aos estúdios da RTP para responder às ameaças da Federação. Ali, em directo, exijo que não se metam connosco, pois no nosso emblema existe um Dragão, símbolo de uma cidade que estava adormecida, mas poderia a qualquer momento levantar-se em defesa do “seu” clube. Na reunião seguinte, é-me solicitado pelo Presidente que não fale mais no “Dragão”, porque poderia representar um espírito muito guerreiro [….]”.

“Habituados que estavam os nossos adeptos e associados às vitórias e a um tipo de atitude dos seus dirigentes que se traduzia num inconformismo e reacção ao centralismo que cada vez mais no futebol (como em tudo, em geral) acontecia no nosso país, vai crescendo um movimento de mudança, na esperança de alterar o rumo dos acontecimentos”.

“Estávamos eleitos. Uma nova era começava no FC Porto, mesmo se naquele dia, nenhum de nós, nem no mais estapafúrdio dos seus sonhos, alguma vez se atrevera a pensar que o clube que ali despontava, sendo o mesmo de sempre, seria diferente de tudo quanto até ali se conhecera”.

“Foram palavras que ainda hoje relembro, e de grande importância para a minha vontade de servir (…) Acrescentei que considerava estar o FC Porto numa corrida que teve início e não terá fim. Por isso, era uma honra para mim receber o testemunho das suas mãos, para o entregar daí a dois anos a quem quer que fosse”.

“Entendi, a minha Direcção entendeu, que aceitar esta situação era “aninhar” ao princípio de “Lisboa quer, pode e manda”. (…) mas sim um asssumir do carácter das gentes do Porto, o bater o pé ao modo como em Lisboa se olhava (e ainda se olha!) para o resto do País: mera paisagem(…)”.

“Passámos de clube simpático que muito raramente arranhava os poderes estabelecidos, para um clube de dimensão mundial”.

“Só que nós nunca ficaremos cansados de vencer”.

“Se o ambiente criado era para intimidar os nossos jogadores, o tiro saiu-lhes pela culatra como costuma dizer o nosso povo. Ainda não perceberam que, quanto maiores são as dificuldades, quanto mais aumentam as adversidades e quanto mais forte é a pressão, tanto mais a nossa equipa se agiganta e demonstra por que é que, ao longo destes anos, venceu tudo o que venceu”.
Mas onde está este Presidente? ONDE? Perdeu-se nas brumas do tempo, na espuma dos anos? Onde está este querer, esta vontade de servir, de ser útil, este sentimento, esta emoção, esta vontade de resposta, este espírito, todo este fogo? Onde está o sonho? O que mudou? Onde está este Presidente? Foi lobotomizado numa das operações a que foi infelizmente submetido? Quem o entorpeceu? Quem o adormeceu assim tão confortavelmente que até se nos parte o coração por o termos de acordar?

Presidente, Meu Presidente, meu querido Presidente: não será já suficiente? Não basta de agonia? Para si, para nós? Quando – atrever-me-ia a dizer, mais de 80% dos associados e adeptos já lhe aponta o dedo e/ou pede a sua cabeça? Há algo que pessoa alguma pode contestar: você ama o clube tanto ou mais que ninguém. Pois se lhe deu Vida, pois se lhe deu a sua vida, se o mimou, se o curou e tratou e agigantou, dias e noites, tantos dias, tantas noites. Porquê agora pôr tudo isso a perder? Todos esses dias? Todas essas noites? Toda essa maravilhosa obra? Está na hora de passar o testemunho que recebeu naquele dia e àquela hora das mãos de Américo de Sá. De dar o lugar a quem sonhe, a quem a alma diga não a perseguições, maquinações, racismos e centralismos, a quem se exalte e se encha de labareda, e possa voltar a pôr o nosso Porto, seu e meu, na tal da corrida que um dia começou e que não terá fim.

Sabe aquela frase feita “Vencer é o que acontece quando te cansas de perder”? Consigo foram anos e anos a fio a vencer e, agora, como que se cansou de ganhar. As suas pernas estão gastas de tanto correr, se adiantar e driblar, o seu coração generoso e abnegado está exausto. A voz calou-se ou já ninguém o ouve. Já não há fome ou sede. O fogo extinguiu-se. O sonho morreu. Está na hora. Ouça-me, Presidente. Chegou o momento. É este. ELES planearam atirar-nos aos lobos e NÓS, pelo caminho, fomos ajudando quando os subestimámos, quando pensámos que o que tínhamos seria eterno e que podíamos viver dos juros. Precisamos de ressurgir com tudo, de voltar e a liderar o raio da matilha. Recuperar o que é nosso. Não desperdicemos nem mais um minuto, já que cada um deles dói e faz mossa. Está na hora. O clube precisa de si.

* O mesmo nome, na mesma semana, hmmmmmmm... no mínimo esquisito, Lápis Azul e Branco. Ainda que tenhas registado primeiro, juro, juro pelo campeonato desta época que a patente é minha e do Roger Waters, pelo que isso não se faz a ninguém, andar na mente dos outros a usurpar ideias pinkfloydianas para títulos de crónicas, ts, ts, ts! É caso para se dizer: “Great minds think alike, and fools seldom differ”. ;)

4 comentários:

  1. Desde que saiu o Antero nota-se um ligeiro esforço da SAD e Pinto da Costa para mudar o rumo dos acontecimentos. Promoveu-se, e bem, verdadeiros portistas para a cúpula do futebol, como são os casos de Luís Gonçalves e João Pinto. Amiúde, também já se ouve Pinto da Costa a criticar os poderes instituídos, como recentemente se verificou após o jogo de Chaves.

    Infelizmente, a subtileza das intervenções são manifestamente insuficientes para as nossas necessidades.

    Ainda ontem ouvia o Oliveira e Costa a comentar na TV que o Sporting ganhou peso. Ele tem toda a razão. Com o dueto esganiçado que Bruno de Carvalho e JJ fazem, é impossível o mundo mediático não dar atenção às incidências leoninas. O problema, é que esse peso foi ganho às nossas custas. A guerra slb - scp tem-nos sido bastante prejudicial no que toca a mediatismo. Queira-se ou não, mediatismo é poder.

    Não é fechados no conforto do Porto Canal que vamos lá. A nível nacional é um canal irrelevante. Quantas entrevistas se viu de Bruno de Carvalho nas TVs? Até mesmo LFV ocasionalmente dá a sua homilia pública. E nós? Estamos a perder claramente a batalha da comunicação por falta de comparência.

    Sem me querer alongar num tema que daria ainda mais pano para mangas, Pinto da Costa é hoje um bólide vintage. Sai da garagem em ocasiões especiais, tem o valor e prestígio do passado, mas já não tem velocidade e resistência para as vias modernas.

    Infelizmente, como acontece muitas vezes em conflitos geracionais, ainda não interiorizou que é altura de sair de cena em favor de sangue mais jovem.

    ResponderEliminar
  2. Cara amiga
    Confesso que me apetece responder em verso. Aqui vai um nosso conhecido
    .
    Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
    Muda-se o ser, muda-se a confiança;
    Todo o mundo é feito de mudança,
    Tomando sempre novas qualidades.
    Continuamente vemos novidades,
    Diferentes em tudo da esperança;
    Do mal ficam as mágoas na lembrança,
    E do bem (se algum houve),as saudades.
    Luís Vaz de Camões
    .
    Os “confins da sua (dele) memória” são mesmo reais perceptíveis para quem anda por cá há muito tempo que, certamente, não é o caso da minha amiga. Como figura máxima (ia a escrever única) naturalmente terá que ser elogiado pelas coisas boas (e foram tantas) e criticado pelas más (os últimos 3 anos). Tenho dificuldade em aceitar que “mais de 80% pede a sua cabeça”. Basta olhar para os números das últimas Eleições.
    .
    E sabe, minha amiga? Se começarmos a ganhar e os outros a perder tudo muda. Viu como ele veio falar às massas no final do jogo? Nós (os antigos) temos imensa dificuldade em tomar uma posição definitiva. Acho que tudo tem um limite. Escrevo antes de quarta-feira dia em que tudo se poderá alterar. Uma transição brusca causaria efeitos terríveis na estrutura já de si debilitada. Precisamos de maturar a ideia. Todos. Contamos com Portistas como a minha amiga, blogues da bluegosfera, sócios, adeptos e simpatizantes. Tout est bien qui finit bien.
    Bjinho

    ResponderEliminar
  3. Miss BlueBay, para lá da lisonjeira sintonia (para mim, obviamente), não deixa de ser curioso que nos referimos aos dois lados da mesma moeda; a minha cara ao Presidente, eu a todos nós, os demais Portistas. A nossa dormência, provocada pelo sucesso de Pinto da Costa, acabou por contagiar também o próprio presidente, já viu?

    Quanto à origem pinfloydiana, só pode ser de estarmos a ficar "experientes"... :-)

    ResponderEliminar
  4. A ascensão e queda de um mito, que não soube ou não está a saber gerir a sua saída do clube mediante a dimensão da porta. A grande, ou a pequena? Não há nome nenhum nesta vida que se sobreponha ao nome do clube. As pessoas são sempre passageiras, em qualquer quadrante. Não há como fugir a isso. Muitos parabéns, coloco actualmente muitas reticências em ler o que quer que seja sobre esta temática, não por desinteresse, mas pela dor que causa e que me obriga e obrigou a rever o meu comportamento em relação a muitas coisas, mas não podia deixar de ler este. Está excelente, como sempre. Beijos

    ResponderEliminar