A propósito de Bobby Robson, More Than a Manager, documentário agora disponível no Netflix, vieram-me à memória outros tempos e outras histórias, de algo que também ainda está por contar e que, por si só, mereceria um documentário à parte. Falo da história do Departamento de Futebol do Estádio das Antas, daquelas míticas escadas e daquela enigmática entrada para um mundo que era secreto e só acessível a meia dúzia de eleitos.
E esta minha lembrança encerra também uma história curiosíssima com Bobby Robson, Sir Robson, ou por aqui chamado simplesmente de “o Mister”, iniciando um longo percurso português de tratamento dos treinadores por esse curioso nome. Vou contá-la tal como a vivi, tal como de facto aconteceu.
O ano seria 1993 ou 1994, por aí. Desloquei-me às Antas para ver, como de costume, mais um treino do FC Porto. Havia um ambiente especial naquele estádio, na forma de viver o clube, no que o treino representava para os adeptos, no que aquelas instalações logo abaixo do estádio significavam como parte integrante de um complexo onde as equipas de futebol, basquete, andebol, hóquei e natação se misturavam e coincidiam. Os treinos eram vistos pela massa adepta como se de um jogo se tratasse e se algum portista mais ferrenho e mais atento reparasse que um jogador não estava a dar o máximo, era imediatamente chamado à atenção. Misturavam-se portistas de todas as idades, camadas sociais, origens e a verdade é que todos ali pertenciam à mesma família.
Os treinos eram, claro, bem diferentes do que são hoje, mas não tão diferentes como se pode supor. Afinal de contas, pode suceder muita coisa, mas o futebol é algo simples: 22 homens a correr atrás de uma bola e a quererem colocá-la no fundo das redes. Não há muito que inventar ou que mudar. Robson aprendeu com os seus mestres, Mourinho aprendeu com Robson, Villas-Boas aprendeu com Mourinho, Vítor Pereira aprendeu com Villas-Boas e por aí fora. Sérgio Conceição aprendeu com Oliveira, que por sua vez aprendeu com Pedroto. No fundo, o essencial não mudou: o futebol continua, até ver, a ser um desporto de equipa, simples e, por isso mesmo, apaixonante.
Os treinos eram mais básicos do ponto de vista físico, o simples aquecimento com corrida à volta das balizas, as movimentações de aquecimento e estiramento, etc. E depois era treino simples com futebol de ataque, jogadas rápidas, triangulações, cruzamentos para a área e muitos homens a finalizar. Futebol de ataque, rápido, para a frente, à Robson! Lembro-me disso e lembro-me de várias vezes ver a bola saltar as redes do campo de treinos e ir bater num qualquer carro estacionado ali defronte do pavilhão e das piscinas.
Não sei se era da idade ou do facto de ser pequeno e franzino, mas lembro-me das bolas duras da Adidas, pesadas como pedras, que nos faziam olhar para quem batia os cantos e as colocava na área de forma tensa como verdadeiros heróis.
No final do treino, lá iam os jogadores para os banhos e massagens e a nós restava-nos imaginar o que sucederia nesse santuário sagrado: o balneário do FC Porto. Sei que esperávamos muito, de forma interminável até que finalmente, a conta-gotas, lá começavam a sair os jogadores, deambulando perante jornalistas, adeptos comuns e outros funcionários.
O jogador de futebol tinha já uma aura específica, mas não tinha o epíteto de superstar ou de celebridade que hoje tem. Eram, apesar de tudo, homens comuns, que os adeptos tocavam, interagiam, com quem era possível conversar, chegar perto, estabelecer relação. Quase todos os atletas eram portugueses, o que ajudava a aumentar a identificação entre o adepto e o clube. Não que não fossem já admirados ou idolatrados, mas era diferente. Claro que eram assediados, havia a caça ao autógrafo (hábito entretanto perdido em favor da selfie no Instagram), havia as adeptas que iam para os treinos esperar os jogadores, levá-los até ao carro, quiçá oferecendo-se para ir com eles até casa… Existia isso, sim, mas tudo feito de uma forma mais ingénua, mais clara, sem o culto da celebridade que hoje separa indelevelmente os jogadores da sua massa adepta, tornando-os mais distantes, menos individualizados, menos palpáveis, mais desconhecidos.
Num final desses treinos, e já após ter conseguido recolher autógrafos de mais de meia equipa, desde Vinha a Timofte, passando por João Pinto ou Kostadinov, entre muitos outros, eis que surge Sir Bobby, com aquele seu ar traquina de peter pan reencarnado, de criança num corpo de homem já envelhecido. Cabelo branco, olhos infinitamente azuis (olhos que sempre tiveram um brilho especial, sincero, parecendo prestes a rebentar em choro como a maioria dos olhos azuis), calça inglesa larga, em mangas de camisa. Sai apressado, a correr.
É preciso parar e perceber o que significou Robson no FC Porto. Não era apenas mais um treinador, era por si só um espectáculo dentro do espectáculo, um homem especial, um homem do futebol, que vivia e respirava o desporto-rei. Sabia interagir com a bancada, entendia a componente cénica do jogo, sabia ser teatral, enervava-se, vivia o jogo ou, pelo menos, fingia enervar-se e viver o jogo, pois sempre me deu a ideia de Robson ser um homem que actuava para uma plateia, percebendo melhor do que ninguém o que o adepto queria ver, o que o adepto procurava, o que o adepto sentia. No fundo era um entertainer. Robson adorava futebol, respirava aquela relva como se fosse a praia da sua vida e por isso entendia bem o que os outros sentiam.
E foi por isso, creio, que quando sai disparado do Departamento de Futebol a correr em direcção ao carro, com certeza já atrasado para algum almoço previamente alinhavado, pede desculpa a todos e diz que naquele dia não pode parar para autógrafos nem fotografias, “sorry, sorry, I have to hurry….pressa pressa, hoje no possível, sorry!”
Robson era de facto um gentleman, um homem com pedigree e de charme irresistível, que não sabe estar mal em nenhuma situação, sempre mais elegante que os outros, mais genuíno, autêntico, carinhoso, afável, um homem que compreendia o outro, que parecia perceber o que os outros sentiam, um autêntico Sir, que era engraçado e espirituoso mesmo sem o saber ou sem fazer deliberadamente por isso.
Fiquei decepcionado, como qualquer miúdo de 8 ou 9 anos, com a saída rápida de Robson. Era o autógrafo que mais desejava e talvez por isso decidi não me dar por vencido e seguir atrás do Mister, que já subia a rampa em direcção ao seu automóvel, apressado mas dizendo adeus a toda a gente, no seu jeito gingão inglês. Até que Robson repara no miúdo que segue atrás dele, de caderno – um caderno de capa dura, amadeirado, muito pequeno, com folha de qualidade superior, oferecido pelos Avós – e caneta na mão. O primeiro impulso é pedir desculpa, “sorry kid, I can’t, it’s too late, tarde, tarde, sorry”. Mas logo depois, como se a sua consciência lhe estivesse a dizer algo como “mas vais deixar aqui a criança triste sem o autógrafo?”, gira sobre si mesmo, dá uns passos para descer a rampa, aproxima-se de mim e diz “Sorry kid”, pega na caneta, assina no caderno e faz-me uma festa na cabeça. Bobby Robson nunca esqueceu as suas origens do nordeste inglês, onde cresceu numa região mineira e onde o sentimento de pertença à comunidade é mais forte do que tudo. A sua extrema humildade saltava à for da pele, era-lhe intrínseca.
E assim, de forma rápida, deu meia volta a correr e em duas passadas alcançou o carro, saindo imediatamente depois das Antas. Este é o Robson que eu recordo, mais do que o Robson do documentário, que por acaso até negligencia, talvez em demasia, a passagem do britânico por Portugal. Para uma criança como eu, é óbvio que Sir Bobby ficou para mim como para Paul Gazza Gascoigne:
“It’s Sand, Earth and Sir Bobby”
Para finalizar esta recordação, e para provar que nada disto é fantasia ou fruto da minha imaginação, partilho uma fotografia desse dia, onde juntamente com o meu primo, me deixei fotografar logo à saída do departamento de futebol com um dos meus ídolos: o grande capitão e eterno nº2 João Pinto. Parece já que foi noutra vida, mas por incrível que pareça é mesmo a nossa vida.
Rodrigo de Almada Martins
0 comentários:
Enviar um comentário