31 julho, 2008

Ficção ou realidade?

Há dias contaram-me uma história deliciosa. Metáfora dos tempos que se vivem nos futebol luso em geral e na imprensa dita séria em particular, começa como todos os contos ficcionados:

"Era uma vez...

Num quente dia de Verão, o fotógrafo aborrecia-se com o tédio da tarefa que lhe tinha sido destinada. Perdido no meio da abrasadora planície alentejana, impacientava-se com o ócio. As moscas zuniam, farejando o forte odor a suor. Da janela aberta do automóvel era possível ouvir os sons da natureza em redor. Ali, perdidos num lugarejo esquecido pelo tempo, a espera parecia interminável. Pela enésima vez o fotógrafo olhou para o relógio. Soltou novo suspiro, misto de desespero e resignação. Faltavam duas longas horas para a caravana da volta a Portugal passar por ali. Sentindo a testa perlada de gotas de transpiração, o fotógrafo abriu a última garrafa de água. Levou à sequiosa boca o líquido morno. Fez um esgar de aborrecimento. Ao seu lado, o jornalista destacado pelo jornal dormia relaxado, a boca aberta, ressonando. O fotógrafo pousou o olhar nele. Era um jovem imberbe, estagiário, recém-contratado. Não gostava dele. Subserviente, com uma personalidade untuosa, fazia da ambição o lema da vida. O Zé Delgado não era flor que se cheirasse. Procurando abstrair-se da canícula brutal, brincava com a máquina digital, quando ouviu os gritos. Cavalgando as ondas de calor, chegaram até aos ocupantes do carro abafados pela distância. Aterradores, lancinantes, eram um misto de súplica e terror profundo.

Acorrendo ao local de onde provinham os lancinantes pedidos de socorro, os dois homens depararam com uma cena de fazer gelar o sangue. Junto a uma árvore, defendendo-se desesperadamente das investidas de um enorme cão, de aspecto feroz, estava uma rapariguinha. As investidas do animal, com uma agressividade quase sobrenatural, eram debilmente sustidas pela miúda, no limite das suas forças. Siderados perante a imponência do animal, pelo seu rosnido violento, hesitaram na ajuda imediata.

Aparecendo como se transportado por uma qualquer mão divina, um rapaz, dos seus 17 anos, saltou da bicicleta onde passeava e atirou-se, destemido, ao animal, embrulhando-se numa luta titânica, com os corpos a confundirem-se, unidos num abraço mortal. Hipnotizados pela estranha coreografia, ficaram parados, incrédulos pela ferocidade do drama a que assistiam...

Num assomo de fúria, sangrando abundantemente de várias feridas, o rapaz espeta, já com as forças a esvaírem-se, um dos raios da bicicleta, partido durante a refrega, em pleno coração da fera. Com um latido pungente, o cão soçobra, estendendo-se, quase como se dormisse.

Um estranho silêncio abateu-se sobre aquele drama. Só os soluços da rapariguinha, com a cara escondida nas mãos, cortavam o ar quente. Recompondo-se rapidamente, vendo ali a possibilidade de uma reportagem que o catapultasse para outros vôos, Zé Delgado avançou, com o bloco de notas pronto a registar o acto heróico.

Pressuroso, estendeu uma mão ao rapaz deitado. Escondeu um trejeito de nojo quando este o sujou de sangue, que escorria brilhante. Engolindo o ar em grandes golfadas, respirando com dificuldade pelo esforço da luta, o rapaz parecia alheado dos fotografias disparadas consecutivamente, abarcando a dimensão total da cena. Esboçando o seu melhor sorriso, que lhe deformava o rosto, Zé Delgado proclamou, de forma pomposa:

"Parabéns, meu rapaz. Foi um acto de grande heroismo, esse teu. Arriscaste a própria vida em prol de um teu semelhante..."

O rapaz, lívido de fraqueza, apenas assentiu com a cabeça, murmurando um agradecimento inaudível. Zé Delgado continuou:

"Felizmente para ti estava aqui eu. Assim, esse teu enorme acto de coragem não passará despercebido ao grande público. Vais ser capa de jornais, garanto-te, e esse teu gesto será reconhecido nacionalmente. Serás alvo de homenagens..."

E continuou, absorto, como se declamasse para uma plateia, vendo-se a si mesmo candidato ao prémio Pullitzer.

"Até já vejo a capa de amanhã. Jovem herói, benfiquista, salva rapariguinha indefesa de cão feroz..."

Voltou-se, ao ouvir um pigarrear tímido atrás de si... o jovem, com um ar nauseado, provavelmente pelas feridas infligidas, desculpou-se educadamente:

"Mas senhor...eu não sou do Benfica...".

"Ai não?", exclamou o Zé Delgado, com o rosto circunspecto, enquanto o sorriso lhe fugia...

"Não, senhor. Sou do FC Porto", proclamou o jovem, humildemente.

"Tá bem...", finalizou o jornalista, de forma algo agressiva. Afagou por instantes os cabelos louros da rapariguinha, dirigindo-se em seguida para o carro, perante o ar atónito do fotógrafo, surpreso com a urgência da retirada.

O rapaz passou uma noite difícil. As dores que sentia, aliadas ao nervosismo que lhe corria nas veias, impediram o sono retemperador. Mal sentiu os primeiros clarões da alvorada, vestiu-se e correu, rangendo os dentes, até ao quiosque mais próximo. Queria ver a capa do jornal. A curiosidade e o orgulho aumentavam-lhe os níveis de adrenalina.

Sentiu um baque tremendo, o coração dilacerado. Ali, no expositor, em garrafais letras, logo na 1ª página, a toda a largura, hipnotizando o olhar de quem passava:

"Jovem delinquente, da claque dos SuperDragões, mutila animal indefeso". A fotografia de si, ensanguentado, olhando para a objectiva, com o cão a seus pés, ilustrava o título. As lágrimas de raiva correram livremente pelo rosto, deixando sulcos de tristeza atrás de si..."

- fim -

moral da história: mera ficção ou algo próximo da realidade?

10 comentários:

  1. F.A.B.U.L.O.S.O.....este homem a escrever é um Mister.....Nunca a ficção ficou tao bem a realidade...o resto, as entrelinhas e as suspeições adstritas ao post ficam para quem em consciencia quiser emitir um parecer vinculativo de uma qualquer decisão....
    PUM....PUM....Cada texto do Paulo conquista mais um...

    ResponderEliminar
  2. Paulo, mais um soberbo post. Muitos parabéns.
    O único senão é que, infelizmente, é esta a realidade do país em k temos k viver...
    Ainda bem k temos o nosso mágico FCP para nos dar algumas alegrias e com elas afastar por momentos esta medonha realidade.

    Saudações azuis e brancas

    ResponderEliminar
  3. Paulo,
    De ficção nada tem, isto é de facto uma realidade que poucos conseguem ver.
    Parabéns e continua a mostar com estes teus escritos a realidade que rodeia os adeptos e simpatizantes do nosso FCP.
    Saudações azuis
    Emília - Dracaena

    ResponderEliminar
  4. Caro Paulo Pereira:

    Mais uma história de encantar;)

    Na verdade este teu texto traduz na perfeição o ódio de estimação q a classe jornalística tem ao nosso Clube. A imparcialidade, falta de dignidade, o ódio, a subserviência da maior parte da imprensa ao clube do pó branco incomoda-me seriamente mas já deveria estar habituado não?

    Parabéns. És o ÁS de trunfo deste blog.

    ZÉ Delgado não estou a ver...É o Tone, o rato, o Culatra ou o Bino?

    ResponderEliminar
  5. Lucho,

    Ás de trunfo??? Ora essa. No meu baralho, o ás de trunfo tem as fuças do pior inimigo do FCP:)É um baralho à boa maneira americana, no Iraque...

    A figura do jornalista é uma mistura de todos eles, personificado nesse pedaço de ficção que é o Zé Delgado, aqui no auge da sua juventude.

    Como se fosse um prenúncio, hoje no pasquim predilecto dos benfas, lá vem o editorial do jornalista-mor, de bigode farfalhudo, dissertando sobre a saida do Quaresma.

    Diz o tipo, com um tom lúgubre, k neste braço de ferro entre os clubes, a corda partirá pelo lado mais fraco...o lado do jogador. Lê-se e até se fica com uma lágrima ao canto do olho.

    O Serpa acha que o Porto deveria deixar partir o jogador, não lhe cortando a oportunidade. Tão altruístas que eles estão:)

    ResponderEliminar
  6. Este blog está excelente!!!

    ResponderEliminar
  7. Se eu fosse a menina da história ao ler a reportagem:
    - Meu Deus , porque nasci benfiquista, vou-me já crismar e chamar-me Tripeira.

    ResponderEliminar
  8. Caro amigo Lucho, sim estámos entendidos eu só pretendia ter mais comentários no meu blogue!!!
    Abraços

    ResponderEliminar
  9. Paulo,a realidade ultrapassa muito a ficção no que diz respeito a esse Zé Delgado da história.
    Mas o homem está completamente martírizado, doente - sofre de úlcera no estômago, efeito das constantes crises de azia -, desesperado,já ninguém lhe liga- nem o Vieira -,
    tornou-se patético e vai acabar a falar sózinho.
    Parabéns e um abraço

    ResponderEliminar
  10. Gostei muito da estória que o amigo Paulo nos contou!Acho no entanto que poderia ser muito mais condensada,bastava dizer que o zé é um filho da puta,assim sem mais rodeios!

    ResponderEliminar