22 janeiro, 2009

Ensaio sobre a cegueira - a sequela

Já tinha caído a noite, há muito. A casa, silenciosa, era vergastada pelo vento que soprava forte. O silêncio era apenas recortado pelo barulho do soalho, estalando regularmente. O homem, deitado com as mãos debaixo da cabeça, aguardava com impaciência.

Ao fim de uns minutos levantou a cabeça, cautelosamente. A respiração profunda da companheira indiciava aquilo que ele desejava: tinha finalmente caído no sono. Sibilava, quando inspirava profundamente, o que a fazia ressonar ao de leve. Levantando-se com cuidado, o homem ficou parado, por instantes, olhando com carinho para a sua mulher, admirando o perfil recatado, a pele suave, ligeiramente manchada pela idade.

Vestiu o roupão, estremecendo de frio. Apressou-se a descer as escadas, avançando na penumbra, conhecedor do caminho, trilhado amiúde às escuras. Entrou no seu santuário, onde crepitava um fogo na lareira, acolhedor. Acendeu as luzes, deixando que o brilho incandescente se derramasse nos aposentos. O escritório, profusamente decorado com livros, em todas as paredes, encontrava-se atapetado com uma alcatifa escura, fruto da mente decorativa de Pilar. Saramago sorriu, com benevolência, ao recordar o porte majestoso da esposa. Sentou-se atrás da sua secretária, uma imensa peça de mogno trabalhado, escura, onde o computador piscava, provocante. Suspirou. Adorava aquele recanto, onde tinha congeminado a maioria das suas histórias. Ali, na vulcânica Lanzarote, tinha encontrado a paz.

Abriu uma das gavetas, retirando o seu tesouro. Um Cohibas, cubano de excelência, enviado pelo próprio Castro, anos atrás. Aspirou o seu formato, inebriando-se com o aroma adocicado. O médico tinha-o proibido de fumar, de forma determinada. E Pilar, a doce amada, seguia à risca os conselhos, quase como um sargento da Gestapo, vigiando-o como um falcão. Acendeu o charuto, dando uma baforada de forma prazenteira. Aproveitou o momento, deixando que a coluna de fumo subisse, lentamente, até ao tecto.

Sentia-se inquieto. Precisava de escrever. Algo pulsava no seu interior, como possuindo vida própria, incitando-o a debitar palavra após palavra. Tinha apenas um problema. E dos grandes. Estava sem ideias. A inspiração, cruel, tinha-o deixado, depois do prazo esgotante da sua última publicação.

Navegou na internet, inteirando-se das notícias mundanas. Seguia atentamente tudo o que se passava no Mundo, em geral, e na sua Pátria, em particular. Os olhos brilharam, maliciosos, ao passarem sobre os jornais desportivos lusos. A génese de uma ideia começou a germinar, no mais recôndito do seu cérebro.

Ele já tinha a concepção de que necessitava para a sua nova obra. Febril, debruçou-se sobre um caderno velho, escrevinhando furiosamente tópicos. Pela primeira vez, na sua carreira, escreveria uma sequela. Ensaio sobre a Cegueira, parte 2. Uma versão mais soft, provavelmente, mas partindo da reflexão do livro original.

    A cegueira. Abatendo-se impiedosamente sobre um homem, de início. Quase como se o Destino o quisesse castigar, num ajuste de contas privado. Aquela figura rubicunda, baixa e untuosa, parca em cabelos, que chefiava a Liga de Clubes, era o portador do flagelo. Inexplicavelmente, vê-se afectado pela praga, a cegueira branca, com os olhos cobertos de uma superfície leitosa, impedindo-o de ver o Mundo ao seu redor. Contagiosa, a doença rapidamente se espalha ao resto do edifício, colocando os seus ocupantes numa espécie de quarentena. Os gritos dos seus subordinados ecoam nos tímpanos de Hermínio Loureiro. “A Taça… a Taça do Campeonato… não sabemos onde está…”. Hermínio, sentado na sua poltrona, arrepia-se com o provável escândalo. Tem campeão, mas não tem taça para lhe entregar. Em pânico, levanta-se repentinamente, apenas para esbarrar num móvel. Uivou de dor…
Saramago sorri, descansando por momentos. O primeiro esboço agrada-lhe. Puxa mais uma fumaça do charuto, recostando-se na poltrona. Olha pela janela, imaginando o resto.
    A cegueira, conhecida como martírio branco, continua a espalhar-se, aparentemente de forma aleatória. Em Guimarães, num banal encontro futebolístico, afecta o árbitro do encontro, num momento crucial, impedindo-o de ver uma grande penalidade clara, cometida por Maxi Pereira, sobre um jogador da casa. O erro, capaz de por si só de toldar a racionalidade dos espectadores, não provoca qualquer tumulto. No banco da equipa da casa, rindo-se alarvemente, o treinador dos vitorianos nada vê, fazendo comunhão espiritual e física com o árbitro do encontro. Cegos.
O Nobel da literatura passa a mão pela testa, sentindo o cansaço a acumular-se. Ainda pensa em regressar ao conforto dos lençóis, para repousar o corpo fatigado. Mas abandona a ideia. Não conseguiria adormecer novamente. Não agora, que sente a escrita a fluir-lhe nas veias, impante de vontade.

    O fenómeno, preocupante, alastra-se cada vez mais. Uns dias decorridos, e a estirpe mais grave da doença ataca em pleno Estádio da Luz. Paulo Baptista, visualmente são, ao entrar no campo relvado, antes do início da contenda, comete uma série de pecadilhos quase obscenos, num claro favorecimento caseiro. No final, quando interpelado pelo treinador bracarense, o árbitro e os seus auxiliares apoiam-se mutuamente, avançando às cegas, enquanto murmuram em transe: “estamos cegos.. estamos cegos… não vimos nada…”. Jorge Jesus limita-se a abanar a cabeça e a olhar para os céus, impotente.
Saramago relê o que tinha acabado de escrever, rindo com vontade. A sequela do seu best-seller serve para acertar contas com o desporto-rei, do qual sempre se mostrou alheado. Mas sente que tem ali matéria-prima. Suspira, voltando ao trabalho.

    As bancadas imponentes do Dragão, habituadas aos cânticos de exaltação clubista, mostram-se estranhamente silenciosas. No seu seio, a multidão que se acotovela, olha para o terreno de jogo, incrédula. Praticamente todos tinham já ouvido falar do fenómeno que atormenta o País, essa cegueira congénita. Não esperavam, no entanto, que o seu momento de lazer fosse, de alguma forma, estragado pelo seu aparecimento. E aquele empate, a zero, perante um inofensivo Trofense, apenas pode ter sido motivado pela praga. Um golo mal invalidado. Um penalty claro, perdoado quase no ocaso da partida. Teriam sido erros deliberados? Acidentais? Ou fruto da cegueira? Aparentemente conformados com a explicação última, abandonam ordeiramente o recinto, amaldiçoando a doença…
Absorto, Saramago escreve agora a um ritmo intenso, apenas parando para virar as folhas do caderno.

    A onda de cegueira alastra-se ao Norte do País, provando que geograficamente ninguém fica impune ao seu aparecimento. Em Vila do Conde, terra piscatória, onde o ar transporta consigo o odor mágico da maresia, um monumental fora-de-jogo, no Estádio dos Arcos, é deixado passar, permitindo a vitória dos lisboetas de listas verdes e brancas. Com tranquilidade, os três preciosos pontos são somados ao pecúlio já existente, deixando os dirigentes leoninos a assobiar para o alto. O juiz de campo, com o vil protagonismo a cair-lhe em cima dos ombros, entrou de quarentena, novel vítima da cegueira total.
Saramago ajeitou os óculos, resolvendo limpar as lentes, permitindo que as suas ideias se ordenassem, no meio da confusão criativa que pairava na sua mente. Continuou…

    Apesar dos ecos de indignação, com o descontentamento a sair do estado latente, ninguém encontrava forma de colocar um ponto final na praga. O antídoto para a cegueira, ainda não encontrado, deixava uma parte da população a fermentar em cólera. Até que o momento da catarse chegou. Numa tarde solarenga, dicotomia perfeita entre a alegria que os raios de sol prometiam oferecer, e o desvirtuamento de mais um resultado desportivo. Num derby da capital, a equipa vinda de Belém assiste, aturdida, à anulação caprichosa de um golo, sonegando um justo empate. Vendo a ira que se levantava em seu redor, dado que ao golo invalidado se unia uma penalidade roubada descaradamente aos atletas da cruz de Cristo, o homem do apito deitou as mãos aos olhos, rebolando-se no relvado, enquanto gritava a plenos pulmões: “não vejo nada… não vejo nada…”. O álibi da cegueira, desta feita, não surtiu o efeito desejado. Como um rastilho que arde, lenta mas inexoravelmente, os puristas do futebol como desporto-rei, limpo de livres arbítrios, uniram-se de forma aparentemente desconexa, mas funcional. A revolta estalou, um pouco por toda a parte. De Norte a Sul, passando pelas Ilhas, já não envoltas em nevoeiro, um interesse altruísta falou mais alto. Os escribas venenosos dos pasquins foram colocados em navios, forçados a um exílio prolongado, bem longe de solo luso. O desmoronamento cívico da sociedade, fermentado na crise económica que grassava por toda a parte, atinge o ponto de saturação. E nada mais voltou a ser como antes…
O escritor faz nova pausa. Sente os músculos do pescoço doridos, protestando com o excesso de horas em tensão. A pele macilenta reflecte o esgotamento, que o deixa quase prostrado na cadeira. Tem um último assomo. Para terminar…

    Passaram-se vários meses, depois da revolta popular. A paz regressou. O País, abençoado pela ausência de défice, com o desemprego a atingir os níveis mais baixos de sempre, regurgita de entusiasmo. É um povo alegre, que ri livremente, liberto de espartilhos. O medo foi afugentado. O futebol, depois de bater no fundo, começa a merecer a atenção dos seus adeptos, que aplaudem extasiados os jogos. Para esse contentamento, contribuíram as medidas tomadas. Jogos à tarde, bilhetes a preços simbólicos, árbitros não obrigados a pertencerem ao clube dos 6 milhões. Uma transformação radical que operou uma metamorfose na face do jogo. Tudo mudou. Bem, nem tudo. Apenas uma coisa permaneceu imutável. Umas gloriosas camisolas, rasgadas de cima a baixo com listas de um azul forte, contrastando com o branco que as pintalgava, continuaram a passear a sua classe, em solo pátrio e no velho continente. O seu símbolo, um Dragão flamejante, usado nas ruas, por uma inteira geração de crianças, sorrisos estampados no rosto, venerando a sua paixão.
Saramago espreguiçou-se. Tinha finalmente terminado. Bocejou, incapaz de controlar o sono. Ainda se ergueu, mas depois parou. Faltava algo. Uma sensação premonitória de que a obra, assim, não tinha o final perfeito. Matutou por instantes. Tornou a sentar-se. Acrescentou mais umas linhas. Sorriu ao lê-las. Agora sim, era um THE END irrepreensível.

    Um caminhão decrépito avançava, roncando furiosamente, na estrada poeirenta do Alentejo. As chapas, protestando com vigor em relação à velocidade, provocavam uma chinfrineira assustadora. Ao volante, com uma camisola de cor indefinida, repleta de pequenas nódoas de gordura, o motorista afagava o bigode, enquanto palitava uma das descomunais orelhas com o dedo. No pára-brisas o nome, estampado em letras irregulares, num cartão amarelado. LUIS FILIPE. Na lona que cobria a traseira, em letras garrafais, o cartão de apresentação da empresa: “PNEUS VIEIRA, TUDU O QUE NESSESSITA PARA O SÉU AUTUMÓBELE”. Sorria beatificamente, enquanto enxotava duas moscas. Na traseira, afadigados em arrumarem a carga de pneus em mau estado, os seus dois novos ajudantes. O pequenino e atarracado amigo de longa data, Hermínio de nome próprio, e o Rui, rapazinho por quem nutria enorme estima, contratado para dirigir o departamento de cobranças duvidosas.

24 comentários:

  1. Paulissimo , acabaste de cegar os gajos,e foi com os dedos nos olhos!

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  2. Eu que sou um tipo de espinha direita, curvo-me perante o génio da tua prosa.

    Ó Blue regista a patente.

    Um abraço

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  3. simplesmente genial...

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  4. Absolutamente F-A-N-T-Á-S-T-I-C-O, Paulo Pereira!!!

    É um prazer enorme ler prosas assim, em que tens a capacidade de juntar o útil ao agradável, não descurando a "ironia" que a própria situação nos oferece!

    PARABÉNSSSS :)

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  5. Futuro risonho esse que escreves :)
    Adoro ler os teus artigos !

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  6. Genial.Contra os vermelhos marchar!

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  7. Muito, mas mesmo muito bom

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  8. PP no Departamento de Comunicação do FCP já!!!

    Uma crónica ao seu nível, ou seja, fabulosa.

    Alguém q reencaminhe isto para os gabinetes do dragão sff.

    Lá dorme-se muito.

    O PP não dorme em serviço.

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  9. Viva !

    Muitos Parabéns pela inspiração !

    "Chapeau" !

    E Viva o Porto !

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  10. Paulo :
    A min não me surpreendeste !!!

    Sei com quem podemos contar. E sempre a dar lenha!!!!!!!!

    Adoro os teus textos, a tua forma de escrever directo e sem TANGAS ....

    Como diz o Lucho :

    O Paulo não dorme em serviço!!!!

    Abraço

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  11. Amigo..estou siderado..curvo-me tb eu perante tal obra..Ainda que embrenhado num sem fim de tarefas que me fazem nao ter tempo para nada, nao podia deixar de te parabenizar por estas linha...Surpreendente , nao quem te conheçe sabe que tu és este rigor e muito mais...Mas deixa-me que te diga depois da "obra" ele o presidente, esta de hoje merece que alguem aproveita o guiao e faça um filme ou edite a obra!!
    FANTASTICO...um abraço

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  12. Amigo Paulo,

    Apetecia-me dizer algo mais elaborado, mas sinceramente, por muito que pense e repense, não me sai mais nada senão dizer que

    "F-A-B-U-L-Á-S-T-I-C-O este teu texto"

    prontos, tá dito... na digo mai'nada, senão, vou acabar por estragar a minha expressão d'espanto que logo aqui acima deixei!!

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  13. VilaPouca:

    Registar a patente não direi, até porque essa é pertença por mérito próprio do nosso "Saramago"... agora, se o tenho aguilhado a toda a hora para ele começar a pensar seriamente em escrever um livro, mesmo que fosse daqueles de tamanho de bolso, ai sim, admito... se ele ainda não se meteu nessa empreitada, não é por minha culpa.

    A cada semana que passa, cada vez são menos os adjectivos que servem para agradecer todas estas prosas do "nosso" Paulo "Saramago" Pereira, senão, continuar a dizer "Obrigado, muito obrigado!!".

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  14. Grande Paulo Pereira! Fantástico texto. Mais um!

    Outra coisa: parece que o Miguel Lopes está a caminho do FC Porto. Eu aplaudo. Assim teremos 3 laterais que nos dão garantias, na minha opinião: Fucile, Cissokho e Miguel Lopes. Relativamente a Sapunaru e Benítez, é vender um.

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  15. Ganda Paulo Pereira. Excelente. Assim fosse o nosso Rui Moreira (esteve bastante melhor, até o realijador estranhou) e a roubalheira que nos fazem seria mesmo muito debatida. Enquanto houver portistas assim, os bandidos terão sempre uma espinha atravessada na garganta.

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  16. Paulo Pereira :


    Mas que brilhante visão !

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  17. Excelente e mordaz o quanto baste.

    É por aqui que devemos ACERTAR contas com gente que afirma, " Quêm não gosta, que não apareça!!!"

    Esta PP, foi directa aos fundilhos dessa gente, com valentia e pontaria nas bolicas, com uma pitada de classe, regada com muito humor.

    Parabéns.

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  18. Palavras para quê? Tá tudo dito!

    Parabéns, Paulo Pereira!!!!!

    Só tenho pena é que na vejo ninguém a fazer nada.....

    BIBÓ O PORTO

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  19. Bravo!

    Ia precisamente perguntar para quando um a entrada numa empreitada literária a altura que demonstras, Paulo, mas como vejo, essa não é um apelo novo, ou meu apenas.

    Ja tens clubes de fãs, e ainda nem publicaste! Desde já aviso, Quando sair o primeiro livro do Paulo Pereira, oh malta, ponham-se na fila, que eu já estou a guardar lugar para o autografo.

    PS: isso bem negociado, e eu faço-te o prefácio do dito cujo, eh eh ;-)
    ______
    Parabéns, por mas um post, por esse belo dom!

    Abraço do Mister.

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  20. Eu acho que tudo isto o que se anda a passar é demais para ser só cegueira, bem antes pelo contrários. É com muita PAIXÃO que os labregos metem uma mão ilícita no futebol português, invisível à justiça e à suposta imprensa. Talvez Adam Smith saiba explicar isto melhor... :-)

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  21. Grandioso Texto ... dassse demais!
    É reencaminhar isto para o nosso
    Presidente JNPC! ...

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