10 setembro, 2008

A saga do "Rei" Artur - parte I

Finda a temporada de 1984, com a brilhante presença na final da Taça das Taças, o calvário de Pedroto estava, também ele, à beira do fim. Agraciado, em 29 de Novembro de 1984, com a Ordem do Infante, entregue na própria residência pelo General Ramalho Eanes, o Zé do Boné via a vida a esvair-se, lentamente, nada podendo fazer para pelejar contra o malfadado cancro que o corroía. Aguentou com o estoicismo conhecido até Janeiro de 1985. Ali, no novo ano, como se a ultrapassagem desse marco constituísse uma vitória histórica, Pedroto soltou o seu último suspiro. Estávamos em 8 de Janeiro. Uma manhã invernal, gélida, autêntico prenúncio da Morte.

Dois dias depois, uma espantosa e esperada manifestação de pesar, num funeral acompanhado por milhares de pessoas. Nelas, nesses seres anónimos, dispostos a acompanhar o Mestre até à sua última morada, morava um pouco da sabedoria do treinador. Pessoas que, de uma ou de outra forma, tinham sido marcadas, de forma patente, pela vivência com um ser humano de excepção.

Num virar de página, enterrando o passado para se vencer o futuro, descobri estas palavras, tocantes, de Fernando Vaz, num elogio fúnebre de enorme simbolismo e sensibilidade:
“Beirão de gema, amado por uns, odiado por outros, Pedroto foi a figura mais fascinante que conheci entre os homens do futebol do nosso tempo. O seu carácter era constante no mundo de gente enérgica que o envolveu desde muito jovem e que sempre o sujeitou ao esforço e à luta. Admirei-o como futebolista de dar sempre tudo por tudo pela acção contagiante do esforço que vertia na luta, sempre pronto a sacrificar os seus interesses pessoais ao interesse colectivo. Como treinador, pode considerar-se o melhor técnico de futebol da sua geração.”

Com o espírito do Mestre pairando, de forma quase palpável, sobre as Antas, o seu sucessor tinha chegado no Verão de 1984 à Invicta. Alvo de alguma desconfiança, pelo currículo resumido e de poucas façanhas, Artur Jorge beneficiou do toque de Midas de Pinto da Costa, pressentindo naquele jovem uma centelha de génio. Tripeiro da Sé e de Cedofeita, antigo jogador dos azuis e brancos, mostrava ser uma figura aparte no mundo do futebol indígena. Culto, revolucionário [Artur Jorge foi presidente do Sindicato dos Jogadores e candidato a deputado pelo MDP], cultivava uma imagem de diferença em relação ao estilo padronizado do treinador luso.

A tarefa herdada não se afigurava fácil. Com o último título conquistado em 1978/79, a abstinência era como uma faca afiada na memória dos que viveram o longo jejum de 19 anos. Perdeu, nesse Verão de entrada no santuário das Antas, as figuras de proa de Jaime Pacheco e Sousa, proscritos refugiados em Alvalade. Recebeu, como contrapartida, um imberbe jogador, desconhecido da maioria do público. Franzino, de pernas tortas, ao estilo de Garrincha, Futre parecia longe de poder colmatar as fugas de gente tão sonante.

Mas esse Porto tinha gente de cepa. Guerreiros que erguiam a divisa do “antes quebrar do que torcer”. João Pinto, Eurico, Lima Pereira, Inácio, Eduardo Luís, numa defesa intratável, de puro betão. No centro, metamorfoseados de formigas trabalhadoras, Frasco, Semedo, Costa e os recém-chegados Quim e André. Homens de personalidades vincadas, moldadas em vidas de árduas dificuldades, sabiam em primeira mão qual o significado da palavra sofrimento.

O toque de magia era conferido pelos pés de Jaime Magalhães, servidor de primeira categoria do Avançado. Assim mesmo. Com maiúscula. Cinco letras apenas para memorizar o nome de um dos mais mortíferos avançados do futebol português. Gomes. Era nele que se depositavam as esperanças de milhares de adeptos. Um plantel, curiosamente, apenas com dois estrangeiros. Na baliza, o jugoslavo Borota. Na frente, o irlandês Mike Walsh.

O Porto não partia como favorito. Os seus rivais directos tinham ambos treinadores novos. Estrangeiros. No Benfica, Pal Csernai era o eleito para substituir Eriksson. Do outro lado da 2ª circular, o galês John Toschack procurava levar os leões à felicidade.

Mas foram os comandados do “Rei” Artur que levaram a melhor. Jogando preferencialmente num 4-3-3, com Gomes a servir de aríete contra as muralhas defensivas adversárias, os portistas tiveram apenas uma derrota, concedida no Bessa, e 3 empates, terminando a prova com 26 vitórias, somando 55 pontos. O passo de gigante foi dado à 18ª jornada, na Luz, embate sentenciado por 1-0. Gomes, num momento de forma sublime, marcava golos de forma compulsiva. Chegou à bonita soma de 34, feito que lhe valeu a 2ª Bota de Ouro da sua carreira. E foi Gomes, na euforia do triunfo frente ao Belenenses [5-1], tornando o Porto matematicamente campeão, depois de alvejar as redes do clube da cruz de Cristo por 3 vezes com êxito que, com as lágrimas a bailarem-lhe nos olhos, proferiu: “Somos campeões…lamento apenas que uma pessoa não esteja entre nós vivendo esta felicidade. Por isso, o título será, obviamente, dedicado a Pedroto”.

**
Se no campeonato tudo correu de feição, a época não terminaria sem dois dissabores. E que dissabores. Daqueles de deixar um amargo de boca durante muito tempo. A caminhada triunfal em território luso parecia ter paralelismo na Taça de Portugal. Eliminatória após eliminatória, os azuis e brancos apenas pararam na final. No Jamor. Pela frente, os encarnados de Lisboa, numa crise profunda de resultados. Apesar do favoritismo generalizado favorável aos Dragões, o resultado final foi um frustrante 3-1. A favor deles.

O momento vexatório do ano aconteceu na Taça das Taças. As expectativas elevadas, depois da campanha do ano anterior, foram cerceadas de forma quase surreal. O Porto, depois de derrotado no País de Gales pelo desconhecido Wrexham por 1-0, deu a volta ao resultado, na 2ª mão. 0 3-0, facilmente alcançável na 1ª metade, não fazia pressagiar o pesadelo que se seguiu. Debaixo de um temporal violento, que fustigava o cimento das bancadas, a surpresa deu lugar ao receio, quando 2 golos de rajada colocaram o resultado no nivelado 3-2. O Porto ainda reagiu. O 4º golo, comemorado efusivamente debaixo de grossas bátegas de chuva, foi um alento precoce. Borota, tremendamente infeliz na saída aos cruzamentos, cometeu novo lapso capital. E a seguir ao apito final do árbitro, um imenso silêncio. Sepulcral. Atónitos, os homens vindos de terras britânicas, olhavam uns para os outros, quase se beliscando para acreditarem que tinham eliminado o finalista da anterior edição. Um momento negro, um dos únicos, na saga do novo ocupante do trono do Dragão. O Rei Artur, que comandaria os seus cavaleiros da Távola Redonda até vitórias históricas…

13 comentários:

  1. Essa época para mim é Histórica:vi todos os jogos do F.C.Porto.
    Jogavamos maravilhosamente,eramos uma máquina trituradora que deixava os adversários sem capacidade de reacção, marcavamos golos atrás de golos - recordo o jogo da Póvoa contra o Vizela, 9-1, em que já a ganhar por muitos, os jogadores não tiravam o pé do acelerador - recordo também e na Póvoa, um jogo - Portimonense - que foi adiado porque havia exesso de público no estádio, etc., etc.
    Estive na noite do temporal - nunca vi temporal como esse - e na desilusão da taça das Taças, mas estive logo no Domingo seguinte, em Coimbra com uma multidão a invadir a cidade no apoio ao F.C.Porto; Ganhamos 3-0.
    Resumindo foi uma época que cada momenento, está bem presente na minha memória.
    Um abraço

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  2. Obrigado Paulo.

    Estou deliciado com todos os momentos relatados. Tenho uma foto num livro no dia do funeral de Pedroto q me marcou profundamente, uma imensa multidão q seguia o seu mestre no momento final.


    A forma como escreves sobre o FC Porto demonstra cultura, conhecimento mas acima de tudo muita paixão. Os teus textos cativam as pessoas, espero q todas elas aqui o expressem porque é justo q o façam.

    Felizes aqueles q conheceram este espaço e podem usufruir das tuas palavras.

    Sei q a saga II do rei Artur tem um episódio final lindo, lindo, lindo, Futre marca em Setúbal e Manuel Fernandes silencia a Luz...O Bicampeonato fica mt próximo...Com o Covilhã confirmou-se o título azul mas ainda levamos 2 sustos... Espero pelo próximo ansiosamente.


    É muito gratificante ler aqui textos sobre o Porto da década de 80 com o meu ídolo a ser figura marcante, GOMES, GOMES, GOMES.

    E depois sempre q leio qq coisa de PEDROTO desejo ter nascido 10 anos antes...

    ABRAÇO.

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  3. Caro Paulo, que maravilha de texto!

    Aliás, como um dos admnistradores do www.bicampeoesdomundo.blogspot.com estou há muito habituado a ler o seus textos, além de ter um prazer,sempre repetido, de receber a sua visita ao nosso blogue.

    Mais uma vez, um post de classe pura!!

    Apenas este parágrafo, uma vez que ainda estou arrepiado com o relembrar sempre prazerento (conquistas, os títulos do Rei Artur) e doloroso (morte de Pedroto, a fatídico Wrexam e derrota com a Juventus do batoteiro do platininho e a morte do Zé Beto) desses momentos.

    Mais uma vez, muito obrigado!

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  4. Olá!
    Outro assunto comentário sobre a actualidade processos encarnados:

    ...se foi um pontapé, um tropeção ou uma simples provocação típica de um jogo, tal passa a segundo plano, quando se consegue a visibilidade, mesmo que desfocada, de um protesto. No fundo, tudo se resume a uma coisa muito simples: estratégia de comunicação. Nos dias de hoje, ela é tão ou mais importante do que uma estratégia de campo. Politiquices.

    Abraço

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  5. olá!

    Eu sou mesmo a helga posser!

    visitem

    http://www.helga-posser.blogspot.com/

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  6. vale a pena ver

    http://oantilampiao.blogspot.com/2008/09/mais-um.html

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  7. Neste ano vi todos os jogos em Lisboa ... a vitória sobre os abutres num estádio pleno de azul e branco ( Gomes ); sobre o Belenenses ( Gomes ) e empate a zero com os lagartos, além da taça perdida para os lampiões.
    Foram tempos fantásticos estes, com o Rei Artur.
    Saíram o Pacheco e o Sousa, pensavam que nos derrotavam, vieram o Quim e o André, nada ficamos a perder e mais tarde resgatamos os dissidentes que regressaram de alvalade sem títulos mas a tempo de serem campeões da Europa.

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  8. O amigo fala aí nos proscritos António Sousa e Jaime Pacheco,mas Jaime Pacheco é campeão Europeu pelo F.C.Porto em 1987 em Viena de Austria.Fêz parte dos convocados,mas nem para o banco foi,esteve na bancada,mas é de facto campeão Europeu,assim como Fernando Gomes e Casagrande,que também não jogaram devido a lesões.
    Peço desculpa pela correcção,de resto,o seu comentário (como todos os outros) é excelente.

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  9. Viva !

    Mais que excelente texto que me revigora a memória ! Obrigadão !

    Paulo Pereira, porque é que curioso ter só dois estrangeiros no plantel ? O Porto não ganhou sempre as competições europeias com o máximo de nacionais ? Nove nas duas últimas !

    Eu sei que o plantel não é igual ao onze. Mas fica a ideia do nove.LOL!

    Creio que a alcunha ( mas a história é sempre ficção ) rei foi criada pelo diário "L'Equipe". Com efeito, os jornalistas deste diário depararam-se com um homem instruído e que falava várias línguas. Artur Jorge, salvo erro, foi um dos primeiros treinadores ( pelo menos na Europa) a ter curso universitário superior. Senão o primeiro !

    Não vi a derrota perante o Wexhram. Mas lembro-me dos comentários de muitos portistas, aquando uma visita ao Porto. Todos falavam de fatalismo. E até um houve que me disse que aquilo ( o vendaval) tinha sido "um redemoinho do Diabo na encruzilhada dos caminhos".

    Acho que hoje já não se fala assim de Futebol. Não sei é bem ou mal. O certo é que se perdeu uma enorme poesia.

    Lembro-me também do Walsh . Jogador humilde ( no sentido nobre da palavra) e abnegado a quem o Porto deve muito. Jogava muito bem de cabeça.

    E, quanto a Walsh, lembro-me perfeitamente de ver uma notícia no JN em que a mulher deu à luz seis gémeos, todos perfeitinhos. Só não me lembro se foi no Porto ou na Irlanda.

    Aguardo a segunda parte com agrado.

    Blue Boy :

    Só uma e outra observação : A agenda lá em cima, no cabeçalho, não está actualizada.

    Porque não aparece a entrevista com Jesualdo Ferreira ? Eu acho que ela é fantástica !

    Tratam-se de observações e não de críticas. Com o decorrer da vida penso que só sabe criticar quem nada faz ou nada produz !

    E Viva o Porto !

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  10. O nascimento dos gémeos Walsh aconteceu no Porto, em Francelos ou Miramar onde o casal vivia...Se eram seis, cinco ou quatro, já não tenho a certeza.
    É realmente pungente a descrição da morte de Pedroto. A morte é mesmo algo muito triste. -Porra, porque raio não inventam mais a poção mágica da Eterna Juventude!...
    Artur Jorge foi indicado por Pedroto a PCosta, após trabalharem juntos em Guimarães. Esta preferência por AJorge fez nascer algum ressentimento em Morais que sofredor, foi carpir mágoas para Lisboa...
    Devo dizer algo que já disse em todo o lado antes: -o Porto era nessa época, uma máquina de Futebol! E fosse o Manchester ou outro qualquer...Claro que houve desde então muitas modificações no Futebol, os grandes estão hoje cada vez mais ricos e poderosos. Mas por cá -na nossa cidade- tem-se feito o que é humanamente possível e este possível tem sido muito!
    -Observem bem a grande qualidade das instalações que possuímos, falta claro muito mais, para atingir aquilo que é a máxima ambição de todos nós, mas é preciso ver as coisas com olhos de ver e isso ser for feito com consciência só poderá conduzir a muita satisfação. Só não compreendo porque Artur Jorge não é convidado a participar nesta faze de desenvolvimento, ele e Jesualdo fariam uma dupla terrível!
    -Quanto ao Rodriguez e a mais esta campanha, só devo dizer a quem procura a verdade que deve ver a totalidade da gravação mostrada pelo "éXeLêVê, ela evidencia que tudo começa com uma sapatada do NunetaGomez...Depois, são apenas sequelas desse gesto inicial da Nuneta. Esse sim é um cobardolas do caraças...

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  11. Olá!

    Portugal 2 Dinamarca 3!
    Carlos Queirós está a revelar-se um seleccionador com pouca visão e falta de audácia. Ninguem com um mínimo de bom senso deixaria o Bruno Alves, actualmente um dos melhores defesas centrais da Europa, um jogador extremamente possante, de estatura elevada 1,92, e, em boa forma no banco!!! E que falta que ele fez. Principalmente quando se joga contra equipas recheadas de jogadores de elevada estatura, e com boa técnica individual. Só o avançado nr.9 dinamarquês mede 1,93 de altura.
    Abraço

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  12. e o quim? esteve ao nivel do ricardo...

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  13. Pois, as épocas gloriosas dos anos 80 que aqui nos começas por trazer, numa qq «parte 1» d'uma sequência que já todos esperamos... mas com um Rei Artur, que sim, foi mesmo REI, mas que a mim, nunca, mas nunca me satisfez... sempre o achei demasiado defensivo, demasiado pró meu gosto... mas quem sou eu pa perceber alguma coisa disso? ele trouxe-nos tb ele, glórias e conquistas... e só por isso, merece o meu profundo respeito.

    No resto, continuei na minha... nunca gostei das suas aptidões técnicas.

    E venha de lá essa «parte 2»...

    ps - ena c'um carago... Mike Walsh, como eu curtia à brava esse avançado. Com ele, era sempre a rasgar ao bom estilo irlandês.

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