01 fevereiro, 2014

Dia de Antas

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Aos meus Avós,
por ocasião dos 10 anos volvidos sobre o último jogo disputado no Estádio das Antas:


Eram os finais de 80, inícios dos 90. A ida às Antas era um ritual, que se planeava com tempo e entusiasmo. O chamado dia em cheio, de encher as medidas e ser impossível pedir mais. Os jogos às quatro da tarde obrigavam a alguma ginástica. Ir ter a casa dos Avós antes do meio-dia, ver o Avô retirar, paciente e demoradamente, o seu R19 da garagem, azul bem à Porto, porque no dia em que o comprou, numa daquelas coincidências da vida, o stand só tinha o modelo nessa cor. A Avó a ajudar na manobra. Depois o Avô envergava as luvas de camurça ou de couro para proteger as mãos do volante que aquecia e, finalmente, fazia-se à estrada. E assim íamos os três para as Antas, o maior privilégio de se ser o neto mais velho e varão.

Estacionávamos a muito custo nas imediações do Velasquez, porque o Avô António não tinha jeito para manobras e nenhum lugar lhe parecia suficientemente grande para a viatura que conduzia. Depois era seguir em passo acelerado para o restaurante, que já se fazia tarde. E, como era dia de festa, os Avós levavam-me a almoçar bem. Não ia ao Mcdonalds, nem à Pizza Hut. Nesses dias almoçava-se a sério. No restaurante Vitória, bem no coração da Avenida Fernão de Magalhães, lembro-me de enfrentar a comida portuense: tripas. A sobremesa não era um gelado nem uma mousse de chocolate. Laranja descascada ou salada de frutas. Sinais dos tempos...

Antes de começar a romaria para as Antas, havia a tradicional paragem no Velasquez, para o Avô tomar o cafézinho e apresentar-me a jogadores do FC Porto de épocas passadas, que ali se reuniam antes dos jogos. Ponto de paragem obrigatório da massa adepta, o Velasquez era o local de eleição para quem queria sentir a adrenalina dos grandes jogos e ouvir as últimas novidades e segredos mal guardados do plantel. Vamos para as Antas, que até os comemos! Ou, como dizia o Avô, de sorriso fácil e ar de quem me estava a introduzir no portismo: “até comemos a relva se preciso for, Rodrigo!”

A caminhada para as Antas, essa, fazia-se devagar, sem pressas, quase numa espécie de procissão ou ritual religioso. Este era o momento em que muitas mulheres se despediam dos maridos, indo para o carro ouvir o relato e fazer crochet. Mas não a minha Avó, que sempre nos acompanhou num meio que, naquela altura, era predominantemente masculino. E lá ia eu, de mão dada entre os Avós, encantado da vida, ora caminhando ora tentando voar levantando os pés e apoiando-me nas mãos protectoras que me seguravam.

Depois ficam aqueles cheiros, as barracas dos cachecóis, as bancas de comes e bebes, a Avenida um mar de gente em direcção ao Estádio, filas de vendedores, bandeiras desfraldadas ao vento, cornetas e buzinas, filas para as bilheteiras. Seguia-se a aventura de passar por entre as bombas de gasolina – uma gasolineira à entrada do estádio, quem pode hoje acreditar? – e dirigirmo-nos aos torniquetes de som metálico. E eu, pequenino, já nessa altura com lugar cativo, vaidoso, sem precisar que o Avô me pagasse ao colo como antes.

Até o interior do Estádio transpirava a mística. Granítico, escuro, sombrio, feio. Casas de banho mal cheirosas, onde se acumulavam filas faraónicas, que davam uma satisfação extra quando conseguíamos finalmente lugar para despejar a bexiga. O bar das Antas não tinha pipocas, nem fatias de pizza, nem hot dogs. Tinha lanches ressequidos, de ontem ou ante-ontem, meia dúzia de chocolates e, quando muito, umas coca-colas. Mas a fila, desordenada e gigante, tirava a vontade consumir fosse o que fosse. O caminho para os nossos lugares era demorado. O estádio não escoava como o Dragão, ia tudo a passo de caracol e as escadas, perigosas, foram não raras vezes fonte de perigosas quedas. Mas as pessoas iam mais cedo e, portanto, havia tempo. Os mais chiques ou vaidosos levavam capas de plástico para as cadeiras. Se chovesse as pessoas iam à bola na mesma, ficavam ensopadas, vestiam dois pares de meias, botas de Inverno e aquelas capas de plástico protectoras para a chuva que eram a moda de então! E lembro-me perfeitamente de ver muitos homens como o meu Avô, de rádio transístor amarelo em punho, para saber ali mesmo se tinha sido penalty ou fora-de-jogo.

Chegávamos aos lugares e todos se conheciam. Cumprimentar um e outro, perguntar pela família, dois dedos de conversa sobre a jornada passada e esperar pela equipa, que entrava religiosamente ao som do hino. O Porto a entrar em campo! O nervosismo a subir, fitas e confetis lançados para o relvado e a equipa lá surgia, a correr, em aquecimento rápido, o Domingos a dar uns sprints e o Aloísio a treinar as impulsões. Aplausos, cachecóis esticados, um barulho inimitável e a certeza de que, perante aquilo, sabemos que nunca mais vamos deixar de gostar de futebol e que o FC Porto se tornou numa paixão para a vida. E o treinador lá vinha em direcção à pala das Antas, já a agradecer os aplausos dos cativos, que variavam conforme a fase da época. Mas não me lembro de assobios, uma boca ou outra ao Sr. Engenheiro talvez, mas no geral um apoio forte, coerente, respeitador, sólido, justo.

Eram os tempos dos vendedores ambulantes do estádio, do “olhó chocolate”, do homem dos gelados, guloseimas sempre à disposição e patrocinadas pelos Avós. Havia também os homens que circulavam pelas bancadas para recolher assinaturas para o abaixo-assinado da recandidatura do Presidente Jorge Nuno Pinto da Costa, os distribuidores da Dragões, a corneta do Sr. Lourenço a entoar a marcha fúnebre quando algum adversário se prostrava no relvado, a arquibancada, magnífica, a levar com o sol de frente. Eram também os dias em que de repente todos se levantavam sem saber porquê, ninguém via nada, ninguém ouvia nada, mas todos tinham uma versão para o sucedido. A maior parte das vezes, claro, era uma rixa qualquer que havia rebentado sabe-se lá porquê. E os nómadas, que acompanhavam o ataque do FC Porto, mudando de lugar ao intervalo.

As histórias das Antas vêm-me em catadupa. Lembro-me de um desconhecido dar um encontrão à minha Avó, ali perto dos torniquetes durante a confusão que foi a obra da Torre das Antas. Lembro-me, como se fosse hoje, do comentário irónico da minha Avó: “este vai cheio de pressa”. Já dentro do estádio surge a terrível notícia: tinha desaparecido o porta-moedas da Avó. Os ralhetes do meu Avô, a maldizer a carteira sem fecho de correr e a minha Avó no estado normal de quem perde dinheiro e cartões, ludibriada de uma maneira tão básica. O porta-moedas, esse, apareceu mais tarde num quarto de banho de um café das Antas. O dinheiro, óbvio, desapareceu. Anos volvidos, já sem a aflição do momento, ficou uma história para contar.

Outro episódio que me vem à memória deu-se num jogo que já não consigo precisar, apesar de mais recente. Os anos que tinham passado pesavam, claro está, bem mais no meu Avô que em mim, que ainda era menino. Chovia torrencialmente e o Porto estava a jogar tremendamente mal. A dada altura, o meu Avô, que costumava saber o nome de todos os jogadores do plantel, pergunta-me se aquele que estava na baliza era o Vítor Baía. Respondi que não, Avô, que o Baía tinha ido para o Barcelona e que aquele era o Hilário, o novo guarda-redes.

Só anos mais tarde compreendi o erro que cometi. Olhar para o relvado e, no lugar do Hilário, ver o Baía... Suprema felicidade a do meu Avô! Como pude corrigi-lo?! Quem não queria olhar hoje para a relva do Dragão e, no lugar do Otamendi, ver o Jorge Costa? Ou no lugar do Danilo ver o João Pinto? Ou no lugar do Jackson ver o nosso Domingos?

De certa forma, tudo faz sentido e tudo tem o seu tempo. Como iria eu hoje explicar ao meu Avô que o Capitão do FC Porto é vendido a meio da época não para Barcelona, mas sim para o Qatar? As Antas foram em larga medida o símbolo de uma cultura, de uma mística, de um determinado tipo de jogador e de um modo de apoiar único e inimitável. O seu ambiente não pode ser reeditado nem o seu lugar pode ser ocupado porque essa cultura, essa mística, esse tipo de jogador e esse modo de apoiar não existem mais.

Rodrigo de Almada Martins

9 comentários:

  1. Texto fantástico, obrigado por nos fazeres viajar no tempo!

    E um último parágrafo com um remate para golo...

    Abraço!

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  2. Caro Rodrigo,

    Brilhante relato do passado não muito longínquo que me fez relembrar as fantásticas tardes das Antas, muito bom!
    Há outra frase que me marca "Como iria eu hoje explicar ao meu Avô que o Capitão do FC Porto é vendido a meio da época não para Barcelona, mas sim para o Qatar?" de facto há coisas inexplicáveis no Porto dos nossos dias, o que diria meu Pai se fosse vivo???

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  3. Fosga-se... sem palavras!!!!

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  4. Bem, neste não posso mesmo deixar de comentar. Foi um texto todo a arrepiar-me. É que conta detalhes que parecem saídos da minha memória.. O meu avô demorava o mesmo tempo a tirar o carro da garagem..tempo indeterminado para encontrar "o lugar" na av combatentes. Arrepiei-me ainda mais quando fala no Vitória. Era lá que iamos almoçar ou jantar, e a história da sobremesa é tão verdade... Depois para rematar fala no velasquez que era o sítio onde o meu avô passava uma boa parte dos seus dias. Em dia de jogo era passagem obrigatória.. Bem, acima de tudo, MUITO obrigado por este texto. Abraço, Rodrigo.

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  5. Obrigado por me fazeres lembrar Domingos fantásticos passados nesse lindo estádio,com o meu Pai e o avô (que mora no céu).Mais uma vez obrigado

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  6. Relataste o passado que parece estar a ver um video tão exato na descrição. Felizmente ainda cá estou para confirmar tão boa memória. Que bem me soube ler ter-te proporcionado tão boas tardes de domingo beijo da avó

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  7. Tenho de comentar este texto magnifico.Recordei também esse tempo passado e também os meus avós.Recordei o caminho percorrido ate chegar as Antas.Recordei o cheiro do café.Muitos parabéns pela beleza com que escreveu e pelo prazer que me deu.Chorei..e mais não digo.Texto digno de saír num jornal desportivo.Bem haja

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  8. Um poema a um avô.Parabéns

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  9. Boas,
    Caro Rodrigo,
    Nunca fui às Antas, infelizmente, mas através deste seu texto julgo que consegui imaginar-me lá.

    Cumprimentos

    Ana Andrade

    www.portistaacemporcento.blogspot.com

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