26 fevereiro, 2011

Futebol Clube do Mundo

http://bibo-porto-carago.blogspot.com/


    “Parece-me uma terrível indignidade ter uma alma controlada pela geografia.”
    George Santanaya, filósofo

Não há adepto de futebol que não conheça um ex-jogador belga chamado Jean-Marc Bosman, cujas limitações no trato da bola não impediram de marcar indelevelmente esta modalidade desportiva no nosso continente. Desde que o Tribunal Europeu decidiu em seu favor em 1995 o desporto-rei nunca mais foi o mesmo e todas as tentativas da FIFA e da UEFA para reverter os efeitos desta decisão judicial têm-se revelado infrutíferas. Sei que é praticamente unânime que a chamada Lei Bosman impôs uma mudança eminentemente negativa para o futebol europeu, mas custa-me alinhar por esse diapasão, e por uma razão muito simples.

Apesar dos salários verdadeiramente absurdos praticados na indústria do futebol dos nossos dias serem, em grande parte, consequência da Lei Bosman (sendo, a meu ver, o principal aspecto negativo dessa alteração), não consigo, por princípio, não gostar de algo que veio eliminar fronteiras e tornar a Europa (e o Mundo) um bocadinho mais livre. Faz-me muita confusão que uma pessoa perca ou ganhe direitos pelo simples facto de atravessar uma linha imaginária no chão. Sempre fez. E mais confusão me faz que seja motivo de orgulho para determinado clube da nossa liga ter barrado a entrada a estrangeiros até à década de 70 do século passado. Esse tipo de restrições à liberdade tem um nome: discriminação. E não é coincidência que o tal clube tenha descartado essa política pouco depois da queda do regime seu patrocinador, que como sabemos fazia do "orgulhosamente sós" bandeira.

Ao contrário, eu como Portista sinto-me incrivelmente orgulhosa da postura livre e aberta que o Futebol Clube do Porto assumiu desde a sua fundação há mais de 117 anos. Aliás, o próprio grupo que acompanhou Nicolau d'Almeida nesta aventura contava com uma série de ingleses radicados no Porto, pelo que somos, desde o berço, um clube internacional. Mais tarde, em 1906, veio um italiano, já com um Scudetto no seu palmarés. Catullo Gadda foi a estrela da nossa equipa à época, tendo também desempenhado informalmente o papel de treinador dos seus colegas. O nosso primeiro treinador.

Depois veio o nosso primeiro treinador na verdadeira acepção da palavra: um francês. Adolphe Cassaigne treinou o nosso clube ao longo de 17 anos e pode dizer-se que foi o responsável pela transição do FC Porto de um grupo de amigos que se reunia para jogar à bola (e mal, ao que consta!) para uma equipa de futebol a sério, que vencia quase todas as competições em que participava – incluindo a primeira edição do Campeonato de Portugal, em 1921/22.

Cassaigne foi o único francês, mas a Gadda somaram-se outros três treinadores italianos. Húngaros foram onze. Oito brasileiros, cinco argentinos, dois austríacos, dois espanhóis, dois jugoslavos (um sérvio e um croata), um eslovaco, um romeno, um escocês, um chileno, um inglês e um holandês completam a lista de mais de quatro dezenas de treinadores estrangeiros que, em conjunto, orientaram as equipas deste clube ao longo de cerca de 70 dos nossos 104 anos de actividade.

Se dos treinadores passarmos aos jogadores, temos assunto para o fim-de-semana inteiro. Dos heróis de Viena aos heróis de Gelsenkirchen, passando por Sevilha (e por um jogador a quem, pelo seu comportamento posterior, não quero chamar herói), foram muitos – e cada vez mais – os jogadores estrangeiros que vestiram e honraram a nossa sagrada camisola, tendo alguns chegado mesmo a envergar a braçadeira de Capitão – como é o caso actual do brasileiro Helton, Capitão de uma equipa com 17 estrangeiros e 7 portugueses.

Muitos adeptos vêem um problema nestes números. Consideram que é "melhor" uma equipa ter muitos portugueses, que é "de louvar" a construção de um bom plantel com poucos jogadores estrangeiros, como os plantéis de 2002-04, onde a proporção portugueses/estrangeiros era praticamente inversa à de hoje. Não partilho dessa opinião. Para mim, excelente seria ter um bom plantel com muitos jogadores da casa, simplesmente porque isso significaria que a nossa formação está a funcionar bem e que esses jogadores já chegam aos seniores com a mística azul e branca interiorizada. Excelente seria também ter um bom plantel com muitos jogadores Portistas desde pequeninos, porque não seria preciso ensinar-lhes o que significa este clube. Não sendo isso possível, o importante é ter um bom plantel, independentemente da cor da pele dos jogadores, do deus a que rezam (ou não) ou do nome que dão ao pedaço de terra onde nasceram.

E gosto, confesso, de ver pluralidade de origens e culturas na nossa equipa. Essencialmente, gosto de pluralidade. Uma das minhas capas preferidas da Dragões é a de Dezembro de 95, que inclui um desenho muito tosco de uma árvore de Natal e outros enfeites, com a foto dos estrangeiros do nosso plantel e a frase: "Natal Portista: a festa das nações". Gosto de ver o desporto, e o futebol em particular, aproximar as pessoas e as culturas. O que sabemos nós de alguns países, para além do nome do seu principal clube e de dois ou três jogadores? O futebol torna o mundo mais pequeno. E isso é bonito.

São muitos os Portistas espalhados por este planeta. Muitas as Casas, muitos os emigrantes, mas também muitos os nativos de outros países, sem qualquer ligação a Portugal, que por qualquer motivo cedem ao nosso clube um cantinho do seu coração. São muitos os elogios da imprensa estrangeira, que nos respeita e valoriza enquanto a nacional nos despreza e ofende. E sabiam que fomos o primeiro clube português a receber uma equipa estrangeira, quando em 1907 defrontámos o Real Clube Fortuna de Vigo (actual Celta de Vigo) no Campo da Rua da Rainha? Claro que sabiam – disse-vos o Dragão Azul Forte ;) Desconhece-se o resultado desta primeira partida internacional de futebol em solo luso, mas para a história fica a pioneira iniciativa de celebrar uma amizade transfronteiriça através de um jogo de futebol. Fomos também um dos primeiros clubes nacionais a jogar no estrangeiro, quando no ano seguinte nos deslocámos a Vigo para devolver a visita, e alguns anos depois trouxemos cá o Vie au Grand Air du Medoc, campeão de França em título. A vocação para cruzar fronteiras – geográficas e simbólicas – tem sido uma constante desde os primórdios da nossa história. Talvez por partilharmos o berço com o Infante Dom Henrique, a nossa alma nunca se deixou confinar por linhas imaginárias.

Assenta-nos bem o título de único clube português Campeão do Mundo. Somos um clube do Porto, vestimos as cores de Portugal, mas temos janela para o Mundo. E não consigo descrever o quanto isso me orgulha!

7 comentários:

  1. “…a nossa alma nunca se deixou confinar por linhas imaginárias.”

    “Assenta-nos bem o título de único clube português Campeão do Mundo. Somos um clube do Porto, vestimos as cores de Portugal, mas temos janela para o Mundo. E não consigo descrever o quanto isso me orgulha!”

    E eu não consigo descrever o quanto me orgulho (tanto!) de ser de um Clube com adeptos como a Enid! Um lindo post, lindo de morrer. É um gosto ler-te, Enid. Muito obrigado.

    Um abraço azul forte.

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  2. Grande texto e concludente mensagem.
    Totalmente de acordo. E com tanto sumo histórico, só podia gostar, como apreciei.

    http://longara.blogspot.com/

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  3. Claro que sim! Somos um clube do Mundo e não dizemos isso para nos colocarmos em bicos dos pés, mas porque é uma realidade, aliás bem expressa na C.I de André Villas-Boas, de ontem, onde lá estava um jornalista japonês a fazer perguntas. E se somos um clube do Mundo, não temos de ter problemas em ter muitos estrangeiros na nossa equipa, só teremos problemas se forem maus prosfissionais e a nossa história diz-nos que mais vale alguém de fora e que sinta prazer em vestir de azul e branco, que alguém de dentro, que está mortinho para ir para fora.

    Beijos

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  4. De facto somos mais que um Clube.
    Somos uma paixão !


    Parabéns à autora
    (pelo belo texto que nos ofereceu) .

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  5. Como já é habitual, um excelente post! ;)

    BIBÓ PORTO

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  6. "Somos um clube do Porto, vestimos as cores de Portugal, mas temos janela para o Mundo."

    eNID,

    em primeiro lugar, parabernizar mais um teu post de altíssima qualidade e «sumo», se assim se pode chamar o sentido figurado ;)

    depois, dizer que tal como tu, tb comungo da mesma opinião que a mim, não me aquece, nem tão pouco arrefece a tal «pluralidade» de nações que equipam o (nosso) azul-e-branco... obviamente que como todos, gostaria de os ter só «Portistas desde o berço», mas como isso é impossível, venha quem vier, esteja quem estiver, respeitando o nosso emblema, terá o nosso permanente e constante apoio e defesa intransigente... contra tudo e contar toLos!

    por fim, parafrasear aquela tua frase final, comungando por completo que sim, somos um clube do Porto, com janela para o Mundo... mas por mim, e que me perdoem os puritanos cá da praça, não vestimos cores alguma de Portugal algum... vestimos sim, as nossas cores, o azul-e-branco... o tal país que falas, para mim, desportivamente falando, não existe, mais não é do que fruto d'uma qualquer ilusão tua.

    mas desde quando o MEU CLUBE vestiria as cores de um país, que pura e simplesmente o ignora, quase não o reconhece e o trata como não existisse sequer?!

    por isso, mas não só, esse tal país que fique lá com a corja de invejosos, ridículos e medíocres, de encornado ou lagarto vestidos... que eu, já me contento e satisfaço com os 'nossos', os Portistas, estejam eles onde estiverem... cá dentro ou lá fora... são esses, unicamente esses os que me importam!!!

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  7. Cinco estrelas como habitualmente.

    Marca ENID e está tudo dito. Garantia de qualidade e Portismo a toda a prova;)

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